O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

A mulher-olho sem rosto



A figura da romancista em Let them all talk de Steven Soderbergh e alguns outros filmes

Por Hélène Frappat

Do jamais visto

É a história de uma mulher sem história. Uma mulher jamais vista, uma mulher jamais nua, uma mulher sem corpo. É a história de uma mulher invisível: uma mulher-olho, cujo rosto se reduz a um par de óculos; uma mulher-orelha, que compila – rouba, vampiriza, espiona – as histórias dos outros. É a história de uma mulher solitária, sem marido, sem filhos. Uma trabalhadora cujo labor escapa dos clichês espetaculares. É a imagem de uma anti-atriz... Ora, todo espectador sendo um voyeur desejoso de excitação, por que um cineasta colocaria em cena uma anti-heroína que não tem nada de excitante? Por que Steven Soderbergh filma uma romancista no seu admirável Let them all talk (ler Cahiers n°775)?

Comecemos descartando dois clichês. O primeiro é aquele do “homem escritor” (historicamente um truísmo), que Stephen King resumiu brilhantemente em Sobre a escrita - a arte em memórias, na fórmula da “Defesa de Hemingway”. Trata-se da imagem do Grande Escritor Alcoólatra, que compartilha seu tempo entre pane de inspiração e pane sexual, sob o olhar compadecido/admirativo/lamentoso/“histérico” da mulher/amante/enfermeira do gênio, toda a ação estando situada não frente à mesa de trabalho, mas no bar ou no quarto de dormir (para citar apenas um exemplo: Barfly de Barbet Schroeder, 1987).

O segundo clichê, cinematograficamente sem interesse algum, é o “biopic de escritora”, geralmente de origem anglo-saxônica (Jane Austen/as irmãs Brontë/Virginia Woolf/Mary Shelley/Sylvia Plath...), que produz filmes na forma de canecas-lembrancinhas do casamento real.

Steven Soderbergh, ao adaptar um conto de Deborah Eisenberg (autora igualmente do roteiro), coloca em cena uma velha romancista – pleonasmo, pois o escritor-olho (expressão de Nabokov), que disseca a comédia humana, não tem idade. Em Let them all talk, a escritora Alice Hugues, interpretada por Meryl Streep, qualifica a existência humana de “comedy of errors”. Se pensarmos que toda intriga se passa no Queen Mary 2, durante a travessia de Nova York à Inglaterra (onde ela vai receber um prêmio que consagrara a sua carreira), a alusão ao naufrágio da comédia de Shakespeare é um traço de humor feroz. Trata-se aliás de uma travessia (crossing) ou de um cruzeiro (cruising)? A equipe parece evitar a todo preço a primeira denominação, ao menos aos ouvidos de Alice Hughes, cuja vida inteira foi dedicada, com uma paciência que Soderbergh desvenda pouco a pouco a humildade estoica, não somente a “deixar os outros falarem” (Let them all talk, título original), mas sobretudo a esperar a palavra justa, a palavra única, pois apenas uma palavra justa qualifica cada uma das experiências complexas e misteriosas que compõem “a vida”. Eis então o melhor documentário que me foi apresentado sobre o que faz um escritor. Isso passa, sob o olhar como sempre feminista, mesmo feminino, de Soderbergh, por uma representação anti-narcisista (Alice Hughes prega e pratica o apagamento flauberiano do eu), anti-espetacular. Let them all talk não será uma variação em torno de Titanic (com o Grande Escritor legando à jovem admiradora enamorada um manuscrito póstumo da sua narrativa genial do naufrágio), mas um filme em que toda ação consiste em colocar e tirar os óculos. É preciso dizer que, depois de uma cena-chave de The Post – A guerra secreta de Steven Spielberg, Meryl Streep domina a operação com perfeição.

A curiosidade matou-a-gata

Uma mulher que deseja olhar, mas que não desperta olhares de desejo, uma escritora em luta com a essência invisível da condição humana – a linguagem –, pode ser o coração pulsante de um filme? Para dizer de outra maneira: a curiosidade (feminina) é excitante? Qual gênero cinematográfico ela inspira? Já que a escritora vê o invisível (os mortos), Soderbergh tira daí um filme de fantasmas? Já que a escritora dá vida ao invisível (o amor), Soderbergh faz uma comédia romântica? Mas o que seria um filme de amor com uma heroína onisciente, consciente que “a atração é a força que anima o universo”? Já que a escritora espiona e rouba o invisível (as “vidas” dos seus próximos, que não foram verdadeiramente vividas, como diria Proust, apenas sublimadas pela literatura), Soderbergh realiza então um filme de espionagem, ou de vampiro?

A partir de um trio feminino – no Queen Mary 2, a escritora convidou seu sobrinho e suas duas amigas mais antigas –, Steven Soderbergh destrói o clichê do escritor-que-vampiriza-seu-entorno-para-criar-seus-personagens. Ao trio se junta uma dupla de autores. De um lado Alice Hughes, que detesta seu único romance de sucesso premiado pelo Pulitzer, encarna (para dizer como Balzac no seu romance-matriz Ilusões Perdidas) o “Cenáculo”, ou seja, a arte e a poesia, guardiões do complexo mistério da vida. Do outro lado, o autor de best-sellers Kelvin Kranz (Daniel Algrant) produz em série murder mysteries, gênero que a escritora julga “muito simples: a vida é muito mais misteriosa”.

Soderbergh encarna o trabalho da escrita, fazendo da procura pela palavra justa – escolha estética e ética – o verdadeiro plot do filme. Cruising ou crossing? Cruzeiro vulgar, baseado em noitadas em que toda relação é reduzida ao dinheiro? Ou travessia que faz reviver o mito antigo (começando pela Odisseia, livro que lê o médico/amante misterioso da escritora) da passagem espectral entre a vida e a morte?

Um vampiro, mas qual?

Let them all talk de Steven Soderbergh é um filme-palimpsesto, sua homenagem íntima ao último filme de George Cukor, Ricas e famosas (1981). Ele oferece a Candice Bergen a oportunidade siderante de prolongar seu antigo papel de melhor amiga da escritora humana e artisticamente íntegra, interpretada por Jacqueline Bisset. No filme-testamento de Cukor, a dona de casa de Malibu (Bergen) rouba os segredos das estrelas de seu entorno para escrever um best-seller cujo manuscrito dá literalmente “vontade de vomitar” à sua amiga, escritora solteira que ela inveja. “I will be the unmarried woman”, tinha previsto a jovem estudante e futura escritora Bisset. Depois de ter tentado lhe explicar que a literatura “foi feita por e para os homossexuais e os judeus”, a “verdadeira” escritora, que se situa na filiação duplamente minoritária de Proust (podemos acrescentar aí Cukor), recomenda o manuscrito vomitivo de sua amiga ao seu próprio editor, num gesto que o espectador ignora se é ditado pela nobreza moral e/ou o masoquismo:

“ - Você deveria ler esse manuscrito, ele tem potencial.
- O que é?
- Um “romance” cheio de sentimentos.
- Quais sentimentos?
- O tipo de sentimento que eles têm em Malibu.




1981. Fim do mundo. Malibu ganhou contra Proust. É hora de Cukor morrer. Quarenta anos mais tarde, Soderbergh radicaliza o conflito de Ricas e famosas dando a Candice Bergen o papel, não da pessoa-que-a-escritora-sem-coração-vampirizou-para-transformar-em-personagem (lugar comum demasiado simples: a literatura é muito mais misteriosa), mais aquele da “verdadeira” pessoa, cujo testemunho, desprovido aliás de qualquer palavra justa, assassina a literatura (e de passagem a escritora). Basta olhar as vitrines das livrarias tomadas por esses testemunhos para apreender o alcance da inversão antecipada por Cukor, e arrematada por Soderbergh.

A garota da gola rolê

Na mise en scène dessa heroína cinematográfica invisível, dessa atriz impossível que é a escritora, Soderbergh vai ainda mais longe que Cukor. Ricas e famosas faz de Bisset, “mulher não casada”, o objeto de um duplo desejo trágico: o desejo invejoso da sua melhor amiga que quer tomar o seu lugar; o desejo efêmero de jovens homens, os únicos companheiros transitórios possíveis para uma mulher com o seu gênio. Uma cena de Alguém tem que ceder de Nancy Meyers (2003) se corresponde com o filme de Cukor, quando a velha dramaturga interpretada por Diane Keaton (ela tem mais de 50 anos) ouve dizer pelo seu jovem amante médico e admirador de sua obra (Keanu Reeves): “Não é incrível para você que o seu gênio não me intimide?




Nesse filme da subestimada Nancy Meyers (contudo, ela levou longe a invenção de um feminismo mainstream), a escritora é a “garota da gola rolê”, antítese das jovens desnudadas que o personagem do velho charmoso interpretado por Jack Nicholson azara exclusivamente:

“ - Eu posso te perguntar uma coisa? Por que você usa sempre gola rolê?
- Eu sou o tipo de garota da gola rolê.

Ao qual Nicholson objeta: “You never get hot?”. Meyers frusta alegremente o imaginário da velha-escritora-garota-frustrada, deslocando o gozo da dramaturga “beyond uptight!”, “para além do bloqueio!”, nas sessões de escrita da sua peça em que ela vampiriza/transfigura a vida em arte, a dor em alegria – extraordinária cena de ruptura amorosa, na qual as lágrimas da mulher abandonada se transmutam pouco a pouco na efusão da criação. A dramaturga interpretada por Diane Keaton não suporta ser vista nua, já que sua função consiste em ser um olho que coloca os outros (incluindo ela mesma) a nu. É o triunfo do filme de Meyers de fazer da garota-da-gola-rolê uma heroína que propõe outras regras ao diálogo amoroso (heterossexual), no espírito da muito vestida Rosalind Russel em Jejum de amor de Howard Hawks, que nunca goza tanto quanto nos momentos em que escreve freneticamente na sua máquina de escrever.

A investigadora

Há alguns anos, as teses da teórica inglesa Laura Mulvey, inventora do male gaze, foram merecidamente importadas para a França. A figura da escritora parece-me no coração de um aspecto de sua teoria raramente destacado: “Essa ideia de um olhar curioso, inquisidor, desloca a questão da fascinação escópica e lhe dá outra dimensão. Ele é exclusivamente feminino? Não somente. Mas a mitologia e os contos abundam de histórias de mulheres curiosas, cuja curiosidade é frequentemente ligada à exploração de um espaço – Pandora e sua caixa, a mulher de Barba-Azul e o quarto fechado, até ao O segredo da porta fechada de Fritz Lang. Trata-se de uma curiosidade que é geralmente punida pois ela é uma forma de desvio – é o caso de Interlúdio de Hitchcock. Para uma mulher, na ideia de “olhar para o interior”, há também a ideia de se interessar pela sua própria feminilidade. Acredito que não é um acaso se as escritoras de sucesso da história da literatura frequentemente assinaram histórias de detetives, ou colocaram em cena investigadoras como, por exemplo, Agatha Christie.[1]




Suspeita de Alfred Hitchcock (1941) apresenta uma investigadora à la miss Marple, arquétipo da velha senhora deserotizada, que tem sucesso nas suas investigações às custas de sua invisibilidade. A velha autora de romances policiais Isobel Sedbusk (Auriol Lee) vive no seu chalé com sua noiva vestida de homem e seu irmão médico legista. Ela advinha, à primeira vista, se um ser humano é capaz de matar. É com essa especialista em venenos que se refugia a jovem esposa desesperada encarnada por Joan Fontaine (um ano depois do seu papel quase idêntico de vítima de gaslighting em Rebecca), a fim de que a mulher-olho de óculos lhe entregue, senão a verdade, ao menos a narrativa precisa de um casamento que, sob a câmera hitchcockiana, se transmuta rapidamente em assassinato. A escritora invisível é a chave da narrativa que a atriz cega não possui.

O viciado no gozo (da ficção)

Apenas um filme, parece-me, se recusa a opor atriz nua e escritora vidente, corpo desejado e olhar desejoso. O personagem interpretado por Sharon Stone em Instinto selvagem de Paul Verhoeven (1992) é uma escritora. A romancista Catherine Tramell oferece com desenvoltura a visão de seu sexo ao investigador que confunde, como ela, pulsão escópica e assassinato. Numa cena extraordinária, a escritora suspeita (e culpada) de homicídio está sentada no banco de trás de uma viatura de polícia. Ela acende um cigarro enquanto um dos policiais lhe pergunta como é que é ser escritor. Ela responde: “Escrever é aprender a mentir, é a suspensão da incredulidade de Coleridge”. Da parte de trás do veículo, ela estende então um cigarro ao policial interpretado por Michael Douglas, que declina: “I quit” – eu parei (de fumar). Ao que a escritora contrapõe: “Você vai cair de volta”. Cair novamente não só no cigarro, na droga, no sexo, ou então no sentido da pulsão amorosa que constitui todo desejo de ficção. Verhoeven faz da escritora de Instinto selvagem a guardiã da crença numa narrativa que é para todos nós, seres humanos, um instinto vital tão essencial quanto o instinto de reprodução. Na derradeira cena do filme, o amante policial sugere à escritora, armada com uma caneta e um picador de gelo, de “viver felizes com muitos filhos”. Quando ela declina educadamente, ele se curva. Então aquela que estava prestes a matar seu amante suspende, não a incredulidade, mas o assassinato. Eis a alternativa que a romancista de Verhoeven propõe ao roteiro hitchcockiano de gaslighting: suspender o homicídio, ao menos no quarto conjugal, e gozar de uma vida sem outras crianças que os romances que os escritores e escritoras concebem.

A velha senhora no fim do mundo

Num conto da romancista de ficção científica Ursula Le Guin, “A velha senhora e o espaço”, uma nave espacial, que abriga os habitantes bem-intencionados do quarto planeta de Altaïr, pousa na Terra. O comandante propõe: “Nós temos lugar para um passageiro; vocês gostariam de nos confiar um único ser humano, a fim de que nós conversemos livremente com ele durante nossa longa viagem de volta, e aprendamos com esse indivíduo representativo tudo que há para saber sobre vossa espécie?” Segundo Ursula Le Guin, a maior parte das pessoas aconselharia embarcar um jovem homem corajoso, culto e esportivo. Ela, ao contrário, recomenda escolher uma velha senhora, “em todo caso com mais de sessenta anos porque, justamente, só pode representar fielmente a humanidade um ser que tenha sentido, aceitado e agido na totalidade da experiência humana, cuja principal característica é a mudança”. A escritora de Let them all talk, na qual se concentra o saber de Steven Soderbergh e o de Meryl Streep, me parece o primeiro personagem que o cinema produziu, depois de muito tempo, suscetível a acompanhar nossa espécie em perigo na sua provável última travessia.

[1] Entrevista com Laura Mulvey, Libération, 23/24 de novembro de 2019.

La femme- œil sans visage foi publicado originalmente na revista Cahiers du Cinéma, n° 776, em maio de 2021. Tradução: Leticia Weber Jarek.


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