O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

“Mas, não o anel no dedo…”




O pescoço de Clarisse, um média-metragem de Benjamin Esdraffo

Por Camille Nevers

Instantâneos roubados (sonhos movediços): um dândi de guarda-chuva pegando um táxi sob o sol forte… A porta de um hotel (com o coração) batendo sem barulho, metrônomo ensurdecido – uma exata medida... a bonita recepcionista de olhos fundos que piscam quando ela retira seus óculos... um homenzinho verde (de esperança, de ciúme?), bigode postiço como um hemistíquio no seu jogo duplo, que se demora, com passos de lobo, olha de longe um avião decolar... esse senhor do anel astrônomo, caído não sabemos bem de que planeta (e porém... Saturno!), saúda por engano uma senhorita perseguida no topo de uma rua… a conversa lânguida de duas amistosas rivais, nariz empinado, poltronas afundadas, no ritmo de um leque... o de um casal que conversa sentado numa taberna indiscreta, e eis que em plena luz do dia a mulher percebe, pelo vidro, uma estrela cadente... – Mais uma que eu teria perdido!... Não perca, se possível, O pescoço de Clarisse.

Um filme feito à imagem dessa rua por onde roda o táxi desde a abertura: em declive suave – como se estivesse em ponto morto, e se deixando levar pelo desnivelamento natural, por uma lei da gravidade transformada em algo absolutamente sem peso, a suave deriva de suaves sonhadores, de eternos conspiradores suspirantes, à tranquila “evasividade”, passeio amoroso estrelado, cintilações mais secretas, sonho das intermitências e das idades do coração. Seguir o guia, seguir o anel... O “anel no pescoço” de Clarisse sinaliza para a narrativa, elo após elo, reconstituir a improvável corrente, a galáxia das alianças revelada de maneira tateante. Entrelaçamentos das gerações, repetições de encontros frustrados e dos amores perdidos, tudo aqui conspira e suspira, parece murmurar a história de uma futura lembrança – a de uma primeira vez, eternamente recomeçada, de um consentimento, de uma aquiescência, o “sim” de um juramento, ou de uma promessa. Essa palavra dada ao amado, será talvez a hora, mais tarde, de cruzar os caminhos engraçados, tangentes e paralelos, de se contar a história mútua, de recolocar em ordem, a menos que o segredo que tenha levado a isso permaneça entre eles, sem maiores esclarecimentos, como um talismã. Suavemente, Antoine e Clarisse, Pierrô e Colombina da nossa época, afastam-se lado a lado na noite, com um ar sonhador, de quem habita seu sonho a dois.

Sem pensar em beijá-la / E sem automóvel / Nos braços de Colombina / Ele tomava todo o seu tempo, todo o seu tempo / Para lhe oferecer seus vinte anos. (Les compagnons de la chanson, Au temps de Pierrot et Colombine)

“Mais, pas la bague au doigt…” foi originalmente publicado na revista La Lettre du Cinéma n°20, outubro/novembro/dezembro de 2002. Tradução: Miguel Haoni.

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