O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Mesa-redonda: “Para Sempre Mozart”, de Jean-Luc Godard




Por Judith Cahen, Hélène Frappat, Emmanuel Giraud, Julien Husson e Sandrine Rinaldi

Para Sempre Mozart é um “Godard” bem mediano, se o comparamos àquelas obras-primas que todos nós conhecemos. Estranhamente, (quase) ninguém ousou dizê-lo. Sem cair na armadilha do assassinato por ausência – pois nós, pontualmente, falamos bem dele – tivemos vontade de fazer uma mesa-redonda em forma de mensagem para o cineasta. O problema é simples: todas as condições estão reunidas para que a crítica institucional e o meio cinematográfico transformem definitivamente o suíço reclamão em um vovô intocável, seguro de sua infelicidade e de sua solidão de Artista. Mesmo que isso signifique passar por imaturos pretensiosos, nós exigimos da parte de um criador, com quem nos importamos talvez mais do que todos os outros, e porque nós pensamos que ele ainda é capaz, filmes um pouco menos previsíveis, um pouco menos confortáveis. Obras, por que não, “fracassadas”, com a condição de que elas assumam riscos, e redescubram o segredo do teor documental! Isso nos tiraria da acadêmica oposição entre “o Homem e a Obra”, na qual o cineasta, cada vez mais cansado, parece ter se refugiado... Ao trabalhar nossas reticências em relação à Para Sempre Mozart, nós também procuramos o que, na obra de Godard, continua resistindo.

O que pedir, hoje, para Godard?

Judith Cahen: O que se espera ainda de Godard, o que podemos pedir a ele...? Essa questão do teor documental me incomoda. Se pegarmos A chinesa e Aqui e lá, qualquer que seja o ponto de partida, ficcional ou documental, vemos como Godard inscreve o documentário dentro da ficção, e reciprocamente. Ele é documental sobre a sua própria ficção, documental sobre os atores. Me parece que essa força documental é a matéria-prima do seu cinema...

Sandrine Rinaldi: É o que diz Gorin: uma ficção se torna boa a partir do momento em que ela vira documentário e um documentário se torna bom a partir do momento em que ele vira ficção.

Judith Cahen: O que me intriga é a que ponto esse filme mostra pouco das relações – digamos a evolução dessas relações. No oposto dos últimos filmes de Breillat ou de Anne-Marie Miéville, que se batem com toda a ingratidão da relação. Como resultado, não se sabe bem sobre o que ele trabalha. Tem essa história do começo, a relação entre um diretor idoso e seus filhos ou sobrinhos que partem juntos, mas Godard os faz desaparecer muito rápido. Isso se torna a ligação de um velho homem com a obra e o mundo... Não existe verdadeiramente relação com o outro... Dessa ideia de relação, eu passaria à questão da produção, no sentido amplo: no sentido em que Rivette diz que um filme conta sempre a história de sua filmagem. De que história o filme de Godard oferece o testemunho? De sua solidão absoluta diante de seus patrocinadores... Temos a impressão de que, na verdade, não existe encomenda, ninguém diante dele! Ele conta essa história de encomenda autoritária, mas não existe “ponte” de exigência em torno dele!

Emmanuel Giraud: O único momento no qual se sente uma relação é a cena do carro, entre Sylvie e Vitalis, e o carro que não liga...

Judith Cahen: Esse é o meu plano preferido!

Helène Frappat: Tem o plano de Vitalis e da garota na cama também...

Judith Cahen: Tem pontinhas de relações, mas Godard não conta a historia dos laços que se amarram ou se desamarram...

Hélène Frappat: Nunca saberemos por que Vitalis partiu...

Emmanuel Giraud: Não existe relação possível, nem com os jovens que se queixam do combate na Iugoslávia, nem com os produtores. Godard dizia, ainda recentemente, que não existem mais produtores, que eles não têm mais dinheiro, e, portanto, não podem pedir nada, nem exigir... Essa reclamação, a eterna reclamação godardiana, seria sensata se ela levasse verdadeiramente em conta a realidade da produção de hoje. Existem produtores que têm dinheiro: para trabalhar com eles seria preciso que seus filmes dessem dinheiro. E existem produtores sem dinheiro, prontos para produzir seus filmes que dão pouco retorno... Em qualquer lógica econômica, ele não pode pedir aos produtores que tenham dinheiro para os seus filmes que não dão retorno! Ou ele se coloca numa situação de grana e dá um jeito de dar retorno, ou ele sai dessa situação de grana, e tem a possibilidade de fazer filmes com pouca grana. Enquanto que nesse filme, Godard se contenta em dizer: “eu não tenho lugar nesse mundo”.

Hélène Frappat: O mar não tem água suficiente! A insatisfação, inverificável...

Emmanuel Giraud: É isso! É como no filme de Vitalis, definitivamente não tem água suficiente no mar!

Julien Husson: Na verdade, Para Sempre Mozart organiza uma relação com a tristeza atual que é, apesar de tudo, uma relação, mesmo que enviesada, com o mundo... É de uma tristeza incrível, de uma tristeza triste, próxima do cansaço. Pode-se acrescentar a ela os tiques de vovôzinho, essa espécie de culpa perene, bem rígida, e depois esse lado velho anarquista de direita, da ironia fácil, o qual Godard não abandonará nunca. Mas pode-se também se perguntar até que ponto ele faz isso conscientemente, até que ponto ele se afunda nessa triste tristeza de forma totalmente lúcida. O filme se ancora parte na burrice dos jovens pró-Iugoslávia, parte na figura da renúncia (do cineasta) – recuando ao máximo o momento em que a melancolia, que é totalmente diferente da tristeza, virá. Em que alguma coisa verdadeiramente emocionante poderá surgir. Em que a citação de Oliveira (“uma saturação de signos magníficos banhados na luz de sua ausência de explicação”), à qual ele não hesita em voltar, será aceitável. Nesse sentido, existe, como raramente, o sentimento de um trajeto pelo qual um cineasta atravessa (sem verdadeiramente pensar nela) a guerra, antes de resolver (sem entusiasmo) enfrentar a rodagem de um filme.

Sandrine Rinaldi: Eu não acredito que tenha saída, por mais que se conheça Godard há vinte anos: o cinema “aventura sem futuro”, se isso não é melancolia, começa a se tornar nostalgia, isso fica rançoso e fácil... Eu pensei em Ferreri que dizia, nesses últimos tempos, que nos anos 70 era fácil fazer um filme, aconteciam muitas coisas, era fácil ser contra ou a favor de tal filme. Hoje é mais difícil para ele encontrar um tema, é mais difícil criticar, pois ele cai rápido nas críticas mais batidas, sem efeito: a crítica das imagens, a crítica da sociedade... Eu tenho a impressão de que com JLG/JLG – Autorretrato de dezembro, Godard chegou numa espécie de cume, ou de impasse... Com Para Sempre Mozart, eu acho que ele filma muito confortável, muito bem instalado. É complicado na verdade: ele é redundante, não assume riscos e ao mesmo tempo eu sinto que ele tem vontade de fazer outra coisa, sentimos nele um desejo de fazer outra coisa em relação ao seu “público”... É tocante. Ele tenta alguma coisa que quase reata com O demônio das onze horas: o lado aviãozinho “bum!”...

Judith Cahen: Como em A chinesa...

Julien Husson: Com a diferença de que naquele momento era lúdico, inventivo. Hoje é estático, é a estase total.

Judith Cahen: Depois, nos anos 70, tinha essa relação “histérica” com a política, e ele observou isso... Hoje, a única relação com a política que ele pode taxar, são os “jovens” que vão para a Iugoslávia!!!

Emmanuel Giraud: Ele os taxa dizendo: “Vocês vão tomar no cu, vocês são, na verdade, criancinhas que queriam brincar de guerra, vocês não deveriam ter ido mais longe do que o canto de jardim que vocês tinham que ter cultivado!”

Hélène Frappat: Você acredita que ele despreza tanto assim seus personagens?!

Julien Husson: Isso não é desprezo, é ironia. Eu acredito que ele sempre sentiu uma espécie de desinteresse fundamental por aquilo sobre o qual ele finge falar (a política). Mas hoje, ele tem a tendência a se contentar em acumular as garantias da ironia. Por isso, duas em cada três cenas são arquiprevisíveis, existe muito pouca surpresa. No máximo, damos um sorriso amarelo (eu falo da primeira parte do filme), com maior frequência nos entediamos, no sentido mais pejorativo do termo: não somos estimulados.




Judith Cahen: Bom, Sandrine, você sentiu no Godard um desejo de passar para outra coisa, voltemos à nossa questão do começo: a de uma espera e de um pedido a Godard. O que pedimos a ele?

Sandrine Rinaldi: Eu não tenho uma relação com o Godard tão forte quanto vocês. Se eu participo de uma mesa-redonda numa jovem revista de cinema não é para bajulá-lo. E se queremos que ele evite se tornar um “velho babaca”... podemos enfrentar a sua forma de mostrar os jovens com brincos na orelha (isso deixa muito “jovem”, os brincos...) que dizem que preferiam ter ido ver Exterminador do futuro 4. Isso, por exemplo, é totalmente nojento! A demarcação, ou a provocação teria sido mostrar jovens “espertos” que vão ver o último “Godard”! Aí haveria uma relação possível – vocês falavam de relação... Com essa denúncia idiota de Exterminador do Futuro 4 e dos “jovens”, estamos no puro consenso...

Judith Cahen: Se continuássemos o jogo de “o que gostaríamos de pedir a Godard”, eu lhe pediria para fazer um documentário, sobretudo depois de JLG/JLG – Autorretrato de dezembro. Porque se ele escolheu falar da Iugoslávia e do movimento “Sarajevo Capital Cultural” que ele faça as pessoas desse movimento interpretar, que ele integre alguma coisa da experiência deles... Eles não estão todos mortos lá! Que ele faça François Tanguy interpretar, no lugar desse seu Jérome...!!!

Sandrine Rinaldi: Mas ele não se importa com François Tanguy!

Judith Cahen: É isso que é triste! Foi ele quem disse “a ficção sou eu, o documentário são os outros”... Então, se ele está só e amargurado demais, que ele volte a ser um pouco documental!

Hélène Frappat: Como em France/Tour/Détour/Deux/Enfants

Judith Cahen: Nem mesmo lhe pedimos tanto. No limite, que ele seja capaz de ser documental como ele foi com Chantal Goya e seu penteado em Masculino Feminino... a forma como ela reajusta permanentemente o seu corte quadrado... Se ele é capaz de fazer documentário com Chantal Goya, ele pode facilmente fazer com François Tanguy!!!

Sandrine Rinaldi: Eu tenho um projeto de filme para Godard: ele deveria fazer um filme sobre Bardot pedindo votos para o Front National em Vitrolles! Ele retomaria sua atriz de O desprezo e então aí... Isso seria interessante... Ou sobre Dorothée. Ou não, melhor ainda, sobre AB Productions. Ele faria um documentário genial sobre AB Productions!

Emmanuel Giraud: Isso o obrigaria a fazer outra coisa, diferente dessas cenas convencionais nas quais o produtor planeja pegar o dinheiro do caixa da sala de cinema. É uma falta flagrante de caracterização dos personagens. O único momento em que os personagens tentam dar conta de sua situação, eles se contentam em dizer: “Ah, vamos tomar no cu!”

Judith Cahen: Não: “no traseiro!” Eles são bem educados...! (risos)

Emmanuel Giraud: Sente-se que esse é um verdadeiro tema: a relação anal com o mundo e com o outro. (risos) Eu então proponho – pois isso é também a vocação da Lettre du cinéma –: que Godard se ponha em cena, diante de uma sala de cinema, que ele se faça sodomizar pela fila de raros espectadores do seu filme, e que ele diga o que sente!

Hélène Frappat: “Como eu fui enrabado (minha relação com o mundo)”! (risos)

Na guerra como na guerra[1]...

Emmanuel Giraud: Bem. Se o filme é criticável, ele está longe de ser horrível, claro. O ponto de partida sobre a família, essa história de burguesia contemporânea, é interessante.

Julien Husson: O problema da primeira parte sobre a Iugoslávia é a sua afetação de intempestividade, ou de inatualidade. Eu contei mais de 20 referências a autores que são, todos, completamente esquecidos, ou considerados antiquados: isso vai de Malraux à Camus passando por Victor Hugo, Bernanos... A lista habitual...

Sandrine Rinaldi: Então, eles não são tão antiquados!

Judith Cahen: Malraux está na moda! O que você quer dizer?

Julien Husson: Eu quero dizer que essas citações não funcionam, ou então funcionam apenas como uma consolação, um bálsamo sobre uma perna de pau, uma palavra supostamente mágica: me parece que Godard se fecha, se protege atrás dessas velhas referências. Da mesma forma: Mozart, tudo bem, isso atrai os espectadores, mas por que não Dusapin?

Helène Frappat: Ah não, não Dusapin! (risos)

Julien Husson: Ou Luciano Berio, ou Ligeti (existem algumas notas de Ligeti, aliás). Enfim, isso lhe permite não se colocar um pouco em perigo. Ele não se pergunta o que é filmar uma guerra hoje, por exemplo... Isso dito, era o gênio de Tempo de guerra mostrar que a guerra se pensa em categorias. Não existe a guerra de 1850 e a guerra “hoje”! A guerra é a Guerra; mas aqui ela está reduzida à única frase do “pedaço de ferro num pedaço de carne”... E mesmo em relação a isso ele introduz uma dúvida, porque ele faz um casting como pretexto! Correlativamente, pois tudo está ligado, numa espécie de negligência nostálgica de não sabemos o quê, uma memória paralisada sobre algumas posturas arqui-conhecidas, nunca, ou quase nunca ele se preocupa com a interpretação dos seus atores: desse ponto de vista, a sequência absolutamente satisfeita dos atores que falam em “salvar os pobres” (?!) é insuportável.

Judith Cahen: Não sei se compreendi.

Julien Husson: Essa maneira muito batida de proceder não produz nem pensamento, nem prazer. O único efeito é um efeito de acumulação. Por outro lado, Godard recicla mais do que nunca. Existem pelo menos nove referências aos seus próprios filmes nessa primeira parte. O ganho, para nós, bem como para os personagens, é muito pouco, porque só se consegue a restituição de uma moral do sacrifício transformada em derrisão... Tudo isso me parece extremamente afastado do “pequeno Sollers”, como diz Vitalis, e de seu belo texto sobre Marivaux (denominado “a Sarajevo”...).

Sandrine Rinaldi: Sobre a Iugoslávia, Godard não “pensa” nada mais do que Finkielkraut...

Hélène Frappat: Isso não tem nada a ver com Finkielkraut!... Mas efetivamente ele não pensa nada da Iugoslávia... E o problema não é esse: no filme ninguém se interessa em saber quem é sérvio, bósnio ou croata!

Judith Cahen: Sobre a guerra em si ele não pensa nada, mas ele pensa a iniciativa dos intelectuais e artistas que vão a Sarajevo... Nesse ponto ele está próximo de Baudrillard...




Julien Husson: Ele disse a mesma coisa em Aqui e lá

Hélène Frappat: Discordo!

Judith Cahen: Em Aqui e lá, ele perguntava: “qual sentido isso tem para nós, aqui, de lutar lá?” Além do mais, isso concernia os militantes políticos! Aqui ele não critica, absolutamente, as mesmas pessoas.

Julien Husson: Ele tenta apenas criticar a forma contemporânea da intervenção estrangeira; mas no fundo, ele diz a mesma coisa. O que me constrange é que ele faça isso de uma maneira tão desagradável. Estamos muito longe da emoção “mental” de Aqui e lá! Ele se contenta em evocar a última figura datada da passividade, da ilusão de intervenção e da capacidade que as pessoas têm de não assumir o mínimo da responsabilidade que eles tinham que assumir aqui onde elas estão. O material é o mesmo, o tratamento menos interessante...

Hélène Frappat: Mas enfim, essas não são, em absoluto, as mesmas guerras! A guerra da Iugoslávia é, mesmo assim, particularmente confusa.

Julien Husson: A luta na Palestina não era menos, Godard simplesmente levou quatro anos para se dar conta.

Sandrine Rinaldi: Digamos que a guerra mudou e Godard não!

Hélène Frappat: Isso não é Aqui e lá, é um conto dos Grimm! Isso é o que eu mais gosto na primeira parte, o lado conto de fadas.

Judith Cahen: Sim, é o lado João e Maria!

Hélène Frappat: É por isso que eu não senti apenas uma “falta” de teor documental. O que me importa, pelo contrário, é essa forma de escolher a ficção... alguma coisa de ingênuo e bárbaro ao mesmo tempo, do lado do conto de fadas. No limite, não tem mais nem menos documentário do que tinha em Tempo de guerra... Eu gosto da ideia da grande resistência, essa ideia totalmente ingênua na qual três personagens partem mesmo se não sabemos muito em direção a quê. Como em Rivette, eles se posicionam, existe trabalho, eles partem!

Judith Cahen: Sim, mas Godard mostra sobretudo a renúncia, o fracasso.

Hélène Frappat: Ele põe em cena a renúncia... Mas Vitalis, o cineasta, nunca é patético... E os três outros ingênuos, sua partida é inteiramente estilizada! Eu gosto quando eles lavam as suas roupas! Isso acontece numa floresta, é o lado Cachinhos Dourados...

Julien Husson: Sim, enfim, é bem bonita a floresta, mas o que fazer com as cenas em que eles cavam as trincheiras onde eles serão fuzilados?

Hélène Frappat: Ah, nos contos de fadas tem sempre um momento em que eles são massacrados! (risos)

Julien Husson: Aqui não é massacre, é extermínio!

Hélène Frappat: João e Maria termina no forno!

Julien Husson: Eu não consigo ver o lado “era uma vez”. Ele é recheado de referências jornalísticas! Isso me impede completamente de ser “encantado”. Não é porque você faz um personagem dizer “que horror!”, que o horror existe! Tem um verdadeiro mau-humor no começo, nas cenas do carro e da refeição... mas a menina que cava uma trincheira falando da difícil “amizade” com a filosofia não é o horror, é o Godard senil! (risos)

Hélène Frappat: Mas tem também a estilização das estações com a empregadinha, seu rosto na neve: é ao mesmo tempo muito ingênuo e cheio de horror! “E quando o manto de neve tiver recoberto a pradaria, o pai se casará...”

Emmanuel Giraud: Eu acredito que Godard mostra que os personagens vivem num conto de fadas. Quando Rosette é estuprada, Camille e Jerôme, em vez de reagir, só conseguem dizer “Pobre Rosette”. Nesse sentido eles estão verdadeiramente muito longe da realidade. Mas o próprio filme não é um conto de fadas!

“Não sentimos nada, mas dizemos alguma coisa”

Julien Husson: Mesmo assim, em relação aos seus últimos filmes, Godard tentou alguma coisa um pouco diferente. Ele opera muito menos sobre a dissociação nas imagens, entre as imagens... Praticamente não existem intertítulos... é também por isso que ele exagera nas referências... O filme, tendo uma menor densidade que o habitual, dá mais espaço para o significado. As referências são menos musicais, elas não se acumulam em muitas camadas...

Judith Cahen: Eu acho bom que ele tente deixar as citações audíveis, putz!

Julien Husson: Digamos que isso acentua o lado grosseiro. Isso impede de sentir qualquer coisa.

Hélène Frappat: Sim, Djémila, no fim da conversa em árabe, diz “O que é a morte – não sentimos nada, mas dizemos alguma coisa.”

Julien Husson: Isso volta pelo menos duas vezes, porque é dito também na floresta. É uma frase extremamente importante. Eu tenho cada vez mais a sensação de que com essa acumulação pesada de frases com referência, Godard deliberadamente impediu qualquer emoção. Como se fosse preciso passar por ali para chegar no eventual “fim” do filme. Como se o mundo de que fala Godard, que já era abstrato, fosse aqui particularmente abstrato. Se existe uma dimensão de Alto Teor Documental, de ATD no filme, é essa. Eu me explico; a frase “Não sentimos nada, mas dizemos alguma coisa” exprime que não há mais tanto lugar para a surpresa. Há apenas uma reiteração dos discursos, que remete a uma passividade dos personagens, e Godard diz “finalmente, eu vou fazer igual”. Parecido com as pessoas que pensam se engajar indo fazer teatro sabe-se lá onde, na floresta – enfim “Godard”, seria melhor dizer “o filme”. Isso é da ordem da opinião geral... Como se ele quisesse restituir um descolamento em relação ao gesto de pegar o “real” nos braços. Não se sente nada, então se fala, na falta de coisa melhor. Através desse “descolamento”, toda uma camada da representação do real permanece no estado de opinião. Como se fosse preciso passar por isso para fazer a transição para aquilo que se torna importante, e que é uma espécie de resgate para o cineasta no filme, a saber, a filmagem, o momento no qual ele se põe a trabalhar. Existe, mesmo assim, uma relação entre Vitalis e sua atriz, uma relação sádica, de cineasta, mas, bom, é uma relação. Pouco importam os atores, porque nós os encontramos entre os cadáveres, nós os despimos e lhes damos um figurino, o que importa é a relação que vamos poder estabelecer com eles. Bergala falou muito bem de que forma Godard presta homenagem, de passagem, uma única vez, à atriz, que pega o vento e a chuva no...

Judith Cahen: Mas ele pegou uma verdadeira atriz! Se se trata de pegar as pessoas, não nas latas de lixo, mas nas valas comuns, porque não pegar uma atriz que viu isso um pouco mais de perto, uma militante do “Sarajevo Capital Cultural?”

Julien Husson: Mas justamente, ele mostra que essa atriz foi encontrada na lata de lixo... Ele pega os dois que escaparam por acaso da morte. Me parece que está claro quanto à questão da “escolha”... É díficil dizer que isso é “documental”, mas é mais estimulante do que aquilo que precede no filme. Isso é, enfim, da ordem da relação. E nessa parte, existem imagens, se não emocionantes, ao menos um pouco interessantes, os céus, um lado pintura marítima, crepuscular...

Os outros: Claaaaaro... (risos)

Julien Husson: E depois, para supor que há “conto de fadas”, saímos enfim, entramos numa temporalidade mais concreta. No momento do casting, o cineasta diz: “Retomaremos depois das férias”. Esse tempo das férias só chega na filmagem. O cineasta toma seu tempo. Ele permanece sentado o dia inteiro sobre o seu banquinho, antes de se levantar e dizer: “Encontrei”. As coisas têm enfim essa simplicidade sem desperdício, e podem, mesmo assim, surgir um pouquinho. Isso permite a passagem para uma outra parte do filme, certamente muito ruim (os espectadores diante da sala de cinema) e depois, sobretudo, a passagem para o concerto final.




Judith Cahen: Isso quer dizer que o filme é muito mais documentário do que se fala, na medida em que ele mostra que não existem mais muitas possibilidades para uma relação documental com o mundo... É verdade que todas as pessoas que foram para Sarajevo falam do sentimento de que não havia mais realidade em lugar nenhum. Isso é muito bizarro.

Julien Husson: Não existe apreensão. Não se sente nada, mas se fala alguma coisa. É isso, “a Iugoslávia”. Desse ponto de vista, Godard permanece um historiador, tão forte quanto nos anos 70.

Emmanuel Giraud: Eu discordo.

Julien Husson: É assim que eu compreendo a ideia de Biette dos “blocos de mundo”.

Hélène Frappat: Ele não fala de blocos de mundo, ele fala de blocos com o mundo ao redor...

Julien Husson: Sim, mas é isso, era preciso passar por um primeiro “bloco”, com o mundo ao redor, só se pode dizer alguma coisa, à despeito de senti-lo, como uma incontornável aridez; para chegar no segundo bloco, com suas falhas, suas aberturas, os penhascos aos quais se pendurar; isso é difícil, é crepuscular, isso passa, claro, por coisas lamentáveis do Godard, do gênero “os produtores são todos idiotas”, “ os diretores de produção são todos pessoas vulgares e colaboracionistas”, mas apesar de tudo, isso avança.

Emmanuel Giraud: Se isso que diz Julien fosse inteiramente verdade, teríamos muito mais que o fragmento de alguns segundos onde o cara diz “OK, é isso, encontrei”...

Julien Husson: É muito mais que um fragmento, isso começa quando Vitalis está no café! Ele está diante de alguma coisa como, digamos, uma solidão, ele partiu de caminhão, aconteça o que acontecer com Camille nunca mais se falará disso, e a transição é feita assim, de maneira extremamente dura. Ele encontra trivialmente os seus atores num lixão, porque sabemos, desde Hitchcock, que as atrizes são vacas, e que não importa qual fará o serviço.

Judith Cahen: Sim, não importa qual... mesmo assim ela é muito bela.

Julien Husson: Sim, ela está nua, além disso… Lavamos nossos olhos de passagem, mas o importante é que o trabalho vai poder ter lugar.

Emmanuel Giraud: Eu compreendo o que você diz, mas eu não enxergo isso.

Hélène Frappat: Mas as “crianças” no começo também trabalham... Sua resistência é um pouco confusa, um pouco ingênua, escoteira, mas a atriz só faz repeti-la, de maneira mais condensada. É a cena das tomadas, 596, 588, “Não, não, não” depois “Sim”. É a mesma história...

Julien Husson: Mas não, Vitalis não está, de imediato, apaixonado por sua atriz como Jerôme é por Djémila (o que o torna menos exigente). Vitalis não está apenas numa relação de gado, mas de exigência infinta. Ele faz 600 tomadas, se for preciso. É muito diferente.

Sandrine Rinaldi: Essa história de transição muito dura entre as partes me parece justa, mas é também o que dá o limite do filme. Porque isso remete a uma composição muito dialética, tese-antítese-síntese. 1) a tese da opinião, que faz com que nos sintamos obrigados a fazer algo, politicamente, pela Iugoslávia. 2) a resposta “artística” do cineasta, diante dos jovens descerebrados que não sabem trabalhar, e que embarcam num impasse – isso sempre me enoja. 3) a resposta teológica, Deus e tudo mais, com Mozart, na pontuação final, a apoteose, o Espírito sintético... Esse aspecto dialético me parece particularmente nojento.

Julien Husson: Isso não é apenas dialético. É místico também. Tem uma espécie de ascensão, de uma esfera de opinião até a esfera da Arte...

Hélène Frappat: Tem uma espécie de graça, mas isso não é especialmente místico.

Sandrine Rinaldi: Ele procurou fazer alguma coisa mais leve, mais próxima do seu período anos 60 que do seu período anos 80, uma coisa de ritornela, de jogo. Mas, ao mesmo tempo, em vez de encontrar o tom menor, ele faz um filme realmente menor... com sua progressão bem marcada... Como se um cineasta fosse obrigado a fazer 35 minutos em torno da opinião... é tão aberrante quanto ouvir Finkielkraut falar durante 20 minutos... A forma como ele quer, absolutamente, dizer alguma coisa, isso me cansa.

Emmanuel Giraud: Bem. Concedamos a Godard os 20 ou 40 primeiros minutos do filme, porque uma entrada na matéria supõe sempre um preâmbulo e um esforço. Mas se nos minutos seguintes ele se esforça em dizer que, acreditem, a única relação possível com uma atriz é o trabalho, e que para isso é preciso ensaiar bastante... Bom... eu acho que isso é, mesmo assim, um pouco leve... (risos).

Julien Husson: Você caricatura o que eu disse. Eu sustento que a primeira parte é totalmente mal-sucedida. Depois, eu tento apenas compreendê-la. Em seguida, isso é talvez uma questão de expectativa diferente, entre Emmanuel e eu...

Emmanuel Giraud: Eu só peço para ver o trabalho!

Julien Husson: Eu senti um certo prazer em ver como Godard filma uma filmagem, a partir do momento em que eu tomei consciência de que tudo funcionaria por derivação de blocos. Eu não estou dizendo que é “profundo”, ou “leve”, ou sei lá... Depois de tudo, como disse Sandrine, isso teria ganhado se fosse ainda mais “leve”!

Emmanuel Giraud: O trabalho é, mesmo assim, filmado às pressas... O plano das claquetes, eu acho isso verdadeiramente péssimo! Seria melhor mostrar o que existe entre as claquetes...

Julien Husson: Eu pensava mais, evidentemente, no momento em que a atriz está deitada no chão e acaba por sorrir...




Judith Cahen: Mas nesse momento ela não está mais no quadro e, contudo, o cineasta diz “é isso, deu certo”... isso não é nada documental! É isso que não funciona! Ela escapa do plano, ela desce para a areia, a assistente corre atrás dela e, depois, de repente, ela chega ali... infelizmente não é diante da câmera, porque, claro, é sempre assim que a coisa acontece e tudo o mais, neste caso, é simples demais...

Julien Husson: Apesar de a câmera estar fora de campo, ele está bem ali para filmar, e Vitalis poderia dizer: “Essa ficou boa”.

Judith Cahen: Mas a câmera ainda está lá em cima, todo mundo viu!

Emmanuel Giraud: Ela está atrás do vidro!

Julien Husson: Mas não é porque ele encadeia duas sequências que estamos no mesmo espaço-tempo!

Judith Cahen: Eu acho isso uma facilidade.

Julien Husson: Tem um corte entre os dois planos, isso é largamente suficiente. Eu não precisei que me explicassem que o cineasta instalou corretamente sua câmera uma vez que a garota foi embora para baixo...

Emmanuel Giraud: Eu pensei “Bem, eles tem um camcorder e eles seguiram a atriz com isso?!”...

Hélène Frappat: Isso também me constrangeu.

Emmanuel Giraud: É como em Todas as manhãs do mundo, a música barroca está presente ao longo do filme, e os caras, ao longo do filme, me dizem: “É bela essa música, hein?!” Você não consegue nem mesmo escutá-la! (risos) É muito fácil pegar uma bela garota, pôr-lhe um belo vestido vermelho, e opa, te joga na areia, um raio de sol e dizemos: “Isso é muito bonito”.

Julien Husson: A emoção da qual eu te falo nasce depois que Vitalis diz: “Essa ficou boa, ficamos com essa”. É o sorriso que se segue, e a maneira como essa garota olha a assistente, com os olhos que se mexem à toda velocidade.

Judith Cahen: Sim, porque “oh ela fez muitos esforços, estamos aliviados com ela...”

Emmanuel Giraud: Você está se deixando ludibriar, Julien. É como a história do cara que fica fazendo uma careta durante um tempo... Depois de uma hora, esse cara põe, por exemplo, o seu isqueiro aqui sobre essa mesa. Você o filma, e o cara te diz: “Esse isqueiro é belo”. E aí você fica contente, porque você pensa que, pelo menos, alguma coisa aconteceu...

Julien Husson: Ele não diz “Essa garota é bela”. Ele diz “A tomada ficou boa”, e eu não vejo por quê sermos particularmente irônicos diante do fato de que Godard presta atenção no sorriso de uma atriz.

Judith Cahen: Isso é um clichê. A retribuição de uma atriz no final de um percurso desencorajador, sua beleza repentina...

Julien Husson: Godard produz ícones há quinze anos, se é isso o que você está denunciando, é possível denunciá-lo...

Sandrine Rinaldi: O plano do pé na vala me toca mais que aquele da garota que sorri.

Julien husson: Ah, mas eu tenho outros... (risos)

Sandrine Rinaldi: O plano se sustenta o suficiente para que Godard não sinta a necessidade, nesse momento, de designar onde está o sentimento...

O silêncio de Mozart

Julien Husson: Retomemos essa ideia de clareza, de filme “menor”, conduzido por uma trilha sonora menos carregada que o habitual. Pela primeira vez eu tive a impressão de escutá-la. Ao mesmo tempo, Godard se livra muito rápido da música de Mozart. É necessário então olhar isso mais de perto. Ela explode no começo do filme, sobre o título. Depois Godard, pouco reconhecível, joga os subalternos do produtor na Mercedes, e mergulha na grama, sobre um fundo de agitação renoiriana, exatamente no mesmo gesto de goleiro de futebol do assistente pegando em pleno vôo o banquinho de Vitalis, depois que este teria “encontrado”. Sim, mas o quê que foi “encontrado” desde o começo do filme, no instante em que a música de Mozart desapareceu, para voltar só no fim?

Os outros (zombeteiros): Sim, o quê que foi “encontrado”?!

Julien Husson: Eu vou testar uma hipótese. No fim, Vitalis chega, de não se sabe onde, no lugar do concerto. Ele não entra na sala, mas se senta no último degrau da escada que conduz até ela, acende um cigarro, escuta a música, e se cala, batendo o ritmo com uma mão. O último plano apresenta uma partitura, virada pela mão do estagiario de Vitalis (o “idiota” do filme). Nos dois casos, o verbo desaparece, e uma mão dirige, mas como que indiretamente, uma ideia, uma imagem da música de Mozart (nós a escutamos ao longe, nós a deciframos). Em alguns momentos cruciais do filme, me parece que Godard tentou inventar “imagens musicais” que dariam, em toda a extensão de seu silêncio, uma ideia integralmente sensível da música de Mozart, e da sua potência de eternidade. Eu penso nesse plano sublime, quando Jérôme e Camille são presos, sobre o rosto de um velho sérvio muito belo, usando um boné e percorrido por tiques, que Godard faz durar numa espécie de silêncio integral. Eu penso no plano do pé que já evocamos. Eu penso, sobretudo, no plano em que Vitalis e sua irmã tentam ligar o seu carro; de repente Godard, num golpe muito franco, como uma síncope, muda de ponto de vista, e filma o carro de perfil, capô aberto; sobre esse plano, uma música elegíaca vem se colocar muito suavemente, antes de desaparecer e de dar lugar, no espaço de alguns segundos, ao silêncio. Nesse instante, eu tive a sensação de que estávamos totalmente alheios da eterna e muitas vezes analisada “imagem-interstício” inventada por Godard – que estávamos muito longe do “entre” o “não sei o quê e o quase nada” com o qual, como que atrasado em relação a si mesmo, ele aluga os nossos ouvidos na primeira parte. Estamos diante de alguma outra coisa. Eu não sei se isso é “novo”, mas eu sei que isso é o equivalente escolhido, logo cúmplice, que eu nem mesmo pensava encontrar na música de Mozart. Como se a imagem fosse uma membrana e, no lugar de fazer eco, de repercutir um som, o amortecia. É nesses instantes que ele está à altura da frase de Oliveira sobre a “saturação de signos magníficos”. Ele tenta essa coisa impossível: filmar a música (de Mozart), através de cortes, estases, suspensões, no ritmo perfeito do silêncio.

Sandrine Rinaldi: Sim, é apenas a retomada da ideia de que o silêncio depois de Mozart é ainda Mozart...

Julien Husson: Eu me perguntava apenas como Godard perseguiu, construiu esse silêncio.

Judith Cahen: É por isso que ele manteve o título Para Sempre Mozart, apesar do seu filme ser a mistura de pelo menos dois ou três projetos diferentes. Isso não é somente uma coisa de marketing. Fazer um filme “sobre” Mozart, não poderia ser, de forma alguma, filmar “Mozart” durante todo o filme, mas convocar todo um mundo, ainda que ele seja constituído de opiniões, para nos colocar na disposição que nos permitiria escutar alguns segundos de Mozart.

Hélène Frappat: Sim, mas se perde, ainda assim, um pouco da busca incessante que é posta em ação no Carmem de Godard, por exemplo, um filme que não para de fazer perguntas. Em Para Sempre Mozart, não existe, verdadeiramente, enigma, não existe, a rigor, nada para “encontrar” – poderia ser um silêncio...

Sandrine Rinaldi: Godard, quando representa “Mozart”, filma... a partitura... Enfim, isso me parece um pouquinho previsível!

Julien Husson: Eu não sei. Digamos que estamos todos de acordo em lhe pedir mais ATD... Com isso, nos calaremos... (risos)

7 de fevereiro de 1997.

[1]Expressão do século XVII. Em tempo de guerra, os recursos e meios são muito frequentemente limitados e é preciso fazer as tarefas cotidianas com os poucos meios disponíveis. Logo, em casos de situações críticas, é preciso trabalhar com o que se tem disponível e não contar com ajuda exterior.

Table ronde : For Ever Mozart, de Jean-Luc Godard foi originalmente publicada na revista La Lettre du Cinéma n°2, verão de 1997. Tradução: Miguel Haoni.

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