O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

“O que fazer com seus desejos?”: Entrevista com Judith Cahen




“Logo vou fazer trinta anos, não posso perder mais nem um minuto”, repete Anne Buridan todo dia, indo de casa para o trabalho, no filme La révolution sexuelle n’a pas eu lieu (1999). Este foi o segundo longa-metragem escrito, dirigido, produzido e protagonizado por Judith Cahen que, assim como Jean-Claude Biette, tem um verdadeiro “horror à perda de tempo”. Judith saiu da escola lançando um longa (A cruzada de Anne Buridan), abrindo uma produtora (Les Films de la Croisade), integrando o comitê de um prêmio (Georges e Ruta Sadoul) e fundando uma revista (La Lettre du cinéma).

Para o nosso encontro – que oficializou o início da nossa pesquisa sobre a revista – voltamos ao local do crime: o escritório da editora P.O.L. (tentáculo da gigantesca Edições Gallimard) onde, 25 anos antes, o comitê da Lettre fechou contrato com a direção da casa num aperto de mãos, sem papéis nem assinaturas. Na conversa nos debruçamos sobre o louco ano de 1995, o filme, a produtora, o prêmio, a revista. E sobre os sentimentos que alimentavam tudo aquilo.

Como descobrimos, Judith Cahen resolveu o problema do asno de Buridan muito facilmente: ao invés de se deixar consumir pela fome, pela sede ou pela indecisão, Judith desenvolveu o superpoder de ocupar, com um corpo, dois lugares ao mesmo tempo. O cinema e a arte contemporânea, o íntimo e o coletivo, a estética e a política... Mas enfim, não percamos mais um minuto!

Boa leitura.

Miguel Haoni

Vestido sem costura: As perguntas que nós temos para lhe fazer são talvez simples demais, mas as respostas não precisam, necessariamente, ser. Podemos começar pelo início ou fazer como Anne Buridan e partir para o essencial.

Você escreveu que, durante os seus anos de estudo, houve dois momentos importantes: o encontro com a militância política e o encontro com duas pessoas, dois parceiros de trabalho, Julien Husson e Hélène Frappat. Como foram esses encontros ?

Judith Cahen: Então... É engraçado vocês falarem da Hélène, mas antes dela havia Emmanuel Giraud. Hélène chegou depois no bando. No entanto, e aqui vocês têm razão, Julien Husson foi meu companheiro, meu parceiro de trabalho e meu roteirista. Depois encontrei Emmanuel na Femis (Fundação Europeia para as Profissões da Imagem e do Som), ele era estudante de produção, o que é um elemento importante e complicado porque a Femis tinha uma dupla reputação: ao mesmo tempo de difícil acesso e muito desprezada pelo meio, que considerava, na verdade, que o cinema não se aprendia na escola. Mesmo assim, com Emmanuel Giraud formamos uma equipe muito importante pois, juntos, fundamos a produtora Les Films de la Croisade. E Emmanuel costumava dizer nessa época: “você deve ser 100% cineasta para que eu seja 100% produtor”, porque ele não queria ser corroteirista. Porque eu tinha o costume de transformar todos os meus amigos em corroteiristas! E Hélène, ao contrário, se prestou totalmente a isso. Assim escrevemos juntas muitas versões de um roteiro. E, realmente, eu escrevi exatamente isso em algum lugar, mas eu diria que Hélène chegou num segundo momento, eu não a conheci na mesma época.

E a militância política, como ela chegou?

Vocês viram A cruzada de Anne Buridan? Porque, é verdade que se pode ver também, nesse filme, os membros da Lettre ainda avant la lettre. (risos)

Então, eu lhes pergunto isso porque vocês viram que, na Cruzada de Anne Buridan, eu ficcionalizo um grupo político. Ora, esse grupo político, que já era, talvez, mais um grupo em torno de uma revista, era de fato, podemos dizer, o ancestral do ancestral do ancestral da Lettre. Nós rodamos no lugar em que as reuniões costumavam acontecer.... Quer dizer, na ENS (Escola Normal Superior) da Rua d’Ulm, onde, de fato, fazíamos parte de um grupo que se chamava Le couteau entre les dents [A faca entre os dentes] (risos). Estávamos próximos de uma revista que se chamava Les cahiers de résistance, que se tornou, que eu saiba, uma publicação que existe até hoje, a revista Vacarme. Hoje, eu não tenho mais nenhum contato com eles mas, por outro lado, eu estava ligada a esse primeiro grupo. Ora, Hélène os conhecia, mesmo que não tenha sido no mesmo momento que eu.

Dessa maneira, nós tínhamos muitas trocas, porque essa era uma turma de jovens normalistas filósofos e Hélène vinha também daí, mesmo que o nosso encontro tenha acontecido mais tarde e por meio do cinema. Mas foi através deles que eu estabeleci uma certa relação com a política... Mas uma relação, verdadeiramente, de uma jovem elite intelectual, porque a maior parte deles era normalista – eu falo isso para vocês porque é importante –, isso quer dizer que eles tinham um salário. São os estudantes pagos da França. São estudantes de um nível alto mas também muito, muito privilegiados. E tratava-se de uma militância de extrema esquerda, Le couteau entre les dents. Mas de extrema esquerda muito intelectual e, dessa maneira, uma espécie de elite. Eu não era normalista, mas enfim, eu estava na Femis e não tinha direito a uma bolsa, porque o meu pai era engenheiro. Eu falo isso porque é importante, porque foi também o que nos foi censurado depois. Quero dizer, nos criticavam com esse anátema: “jovens burgueses privilegiados”.

E a cinefilia apareceu em que momento do seu percurso?

Muito antes. Eu vim para o cinema um pouco pelo teatro. Eu fazia oficinas, cursos de teatro muito jovem, criança mesmo. Criança, adolescente, nesse momento eu queria ainda ser atriz - o que eu me tornei de certa maneira. Na Femis, eu atuei imediatamente nos meus curtas-metragens. A cinefilia veio na infância com um livro sobre Fellini, um livro imenso que agora eu herdei. Na casa da minha avó, tinha esse grande livro sobre os filmes de Fellini, com fotos extraordinárias. Esse livro me fascinava e eu esperava ter treze anos - que era, de fato, a idade para ver certos filmes. Quer dizer que Satyricon era um filme que eu sonhava em ver quando eu tinha dez, onze anos. Depois, eu o revi e ele envelheceu de certa maneira... Sempre me intrigou o fato de que a Cahiers du cinéma tinha uma relação de desprezo com Fellini. Felizmente, Serge Daney retificou as coisas.

Você escreveu um texto sobre a perversão em Fellini e Buñuel, por que esse tema?

Esse foi o meu projeto de mestrado em cinema. Eu fiz as classes preparatórias literárias em filosofia e não prossegui, porque decidi tentar a prova da Femis. Eu entrei na Sorbonne diretamente na graduação de filosofia e meu projeto de mestrado era sobre a perversidade e o cinema em Buñuel e Fellini. Foi um mestrado que eu deixei inacabado, pois entrei na Femis. (Era uma forma de passar da teoria à prática!)

Mas qual era a ideia?

Eu sou filha de psicanalista. Minha mãe era psicanalista e eu acredito que isso é importante na minha estrutura, eu reivindico, além disso, um percurso de analisanda, importante e também inacabado (risos), como diz Woody Allen, “eternamente inacabado”. Então, eu me interessava pelo cruzamento entre o cinema e a psicanálise. E a perversidade para mim resumia-se simplesmente nesta frase: “o perverso é aquele que considera o outro como um objeto e não como um sujeito.” E o que me interessava era a questão do ator. Além disso, Hélène Frappat dizia com humor que Hitchcock falava: “os atores são gado!” e que os atores são bonecos manipuláveis. Os atores não são brinquedos como os bonecos, mas eles não estão completamente na alteridade. O outro, na vida real, é complicado. Mas, no cinema, pode-se jogar com os atores. Então isso me intrigava muito, eu queria refletir sobre essa relação: saber se, finalmente, todos os cineastas que eram excelentes diretores de atores não eram todos perversos polimorfos. Devo confessar que eu não fui muito longe na minha monografia de mestrado e, além disso, no começo, eu procurei por todos os cantos o que foi escrito sobre, e não havia nada! Não tinha muita coisa de interessante na época sobre a psicanálise e o cinema. Eu encontrei dois ou três textos que poderiam abordar esse problema, mas eram textos clínicos. A literatura psicanalítica é muito interessante para os especialistas, mas muito austera e não é feita para cineastas ou estudantes de cinema. Por outro lado, eu li Meu último suspiro, tudo que eu poderia ler sobre Buñuel e Fellini e seus textos de cineastas e isso me alimentou como cineasta. É por isso que desde que eu entrei na Femis, eu pensava: “veremos mais tarde o que será do meu mestrado — ou então não veremos mais! (risos) Eu mesma vou fazer as coisas!”

E existe sempre uma relação com o prazer nas suas escolhas cinéfilas. Nós vimos um vídeo gravado num festival italiano no qual você falava de Renoir, Lubitsch e Hawks, e eu acho que, quando lemos a mesa-redonda da Lettre du cinéma sobre Parfait amour! (Catherine Breillat, 1996) ou a sua correspondência com Hélène Frappat, há uma certa transparência, uma certa espontaneidade na sua fala. Ou quando você fala do filme de Hervé Le Roux (Reprise, 1997) e diz: “mas nós temos que mostrar esse filme para outras pessoas, para muita gente!”. É uma posição muito sincera e enfática. A militância política é também muito excitante, tem um lado “estamos todos juntos”, um lado mise en scène, um lado teatral, na verdade.

Sim, é verdade. Além disso, eu penso que a minha energia de jovem mulher aspirante a cineasta, e depois cineasta, provocou muito o começo da Lettre. Depois os anos foram mais difíceis, a realidade me pegou.

Na minha cinefilia, alguma coisa mudou. Eu tinha a sensação de que havia os hawksianos e os fordianos, isso produzia afinal uma oposição de sensibilidade. Mas também Bresson e Renoir. Eu pensava: Renoir, Hawks. Ora, isso mudou. Quando fui para o Japão, para a cidade de Kujoyama, onde fui artista residente, eu senti uma necessidade, uma avidez em me reconciliar com a minha cinefilia... Então, eu peguei todos os DVDs da biblioteca e acabei sentindo emoções mais fortes diante dos Bressons. Pickpocket tornou-se um filme que me deixa aos prantos cada vez que eu assisto. Eu me tornei religiosa diante desse filme. Eu mudei um pouco.

Você falou do nascimento da Films de la Croisade, do encontro com Emmanuel Giraud, mas em que momento vocês assumiram a direção do Prêmio Georges e Ruta Sadoul?

Muito rápido. De fato, foi realmente através de Emmanuel Giraud, que tinha uma relação com Yvonne Baby. Ela foi a companheira de Orson Welles, entre outros, e ela era a herdeira do Prêmio Georges e Ruta Sadoul. Era já uma senhora de uma certa idade, Emmanuel ia muito à casa dela e ela lhe falou do Prêmio Georges e Ruta Sadoul, que ela estava cansada de se ocupar disso, e ele lhe disse: “eu posso me encarregar disso com o meu bando!” (risos). Ele conduziu as coisas muito bem e a Lettre realmente nasceu daí.

Num primeiro momento, montamos um dossiê de imprensa para o Prêmio Georges e Ruta Sadoul. A ideia era fazer uma carta com um acompanhamento na qual nós escreveríamos sobre os filmes, uma ferramenta de trabalho para instigar os exibidores da França inteira a pegar filmes difíceis para exibir. Então, a ideia inicial era fazer textos quase publicitários para filmes nada comerciais, e o exercício de estilo baseava-se em produzir textos curtos, simples, leves, nada para universitários. É por isso que, depois, a Lettre du cinéma reivindicou, ao contrário, sua completa ambição como revista cinéfila, a qual não teria mais essa mesma missão.

Imaginem que nós fomos todos para Cannes em 1997. E sobre a pilha dos meus arquivos, tinha essa carta que eu escrevi em maio para Chantal Poupaud: “eis a Lettre du cinéma da qual nós tínhamos te falado. Voltamos de Cannes onde estávamos promovendo-a. Nesse número, você vai encontrar textos em forma de cartas, entre Hélène e eu”. Eu lhe havia apresentado Hélène, porque estávamos escrevendo um roteiro juntas. “No momento, nós estamos de novo mergulhadas no Corpos gloriosos”. Imagine: distribuíamos esse fascículo “promocional” com o projeto da Lettre e o projeto de assinatura. Eu acho que é importante dizer que a Lettre du cinéma nasceu desse pequeno objeto cujo objetivo era a difusão. A ideia, na verdade, era de que os filmes eram mal distribuídos.

Há um número no qual eu não escrevi – eu não sei mais qual –, porque eu mesma tinha sido indicada. Tendo em vista que o Prêmio Georges e Ruta Sadoul era para longas de estreia e que A cruzada de Anne Buridan foi selecionado, eu não podia participar. Por outro lado, eu estava completamente inserida em tudo isso e, no ano seguinte, Serge Bozon foi indicado e assim sucessivamente. Nossos filmes estavam também no prêmio.

Mas, realmente, quem estava no comitê do prêmio?

Você acha que eu sei de cor essas coisas de 25 anos atrás, que eu me lembro perfeitamente!? Então, grosso modo, eu sei mas não quero me esquecer de ninguém (leitura): “diretor da publicação: Emmanuel Giraud, direção artística: Agathe Gris, redator-chefe: Julien Husson, comitê de redação: Fabrice Barbaro, Bernard Bénoliel, Manuelle Borgel, Serge Bozon, Sophie Bredier, Judith Cahen, Olivier Kohn, Michel Leveau, Stéphane Malandrin”, Stéphane foi muito importante, ele vinha da Cahiers du cinéma, “Dominique Marchais”, hoje ele é cineasta também, “Christine Martin, Sandrine Rinaldi, Axelle Ropert, Pierre-Olivier Toulza”. Eles já estão essencialmente aqui.




Eu acho que é importante que eu lhes fale de Fabrice Barbaro. Em A cruzada de Anne Buridan, há uma cena com ele. Ele está também no primeiro filme de Serge Bozon, L’Amitié. Fabrice Barbaro era um cinéfilo, mas vocês não podem imaginar a que ponto ele era cinéfilo. Em A cruzada de Anne Buridan, trata-se, aliás, de uma cena, podemos dizer, um pouco cruel para ele. Ele interpreta o papel de Gilles, é um plano-sequência, distantes um do outro nas extremidades de um sofá e depois de algum tempo ele diz... Vocês não viram no filme?

Sim, é o cara dos hétero-chatos!

Exatamente! Fabrice era uma figura muito importante para todos nós. Ele estava ligado tanto a mim quanto a Éva Truffaut, Serge e Axelle. Ele está no filme de Serge, L’Amitié, talvez de maneira ainda mais cruel do que em A cruzada de Anne Buridan. Ele se suicidou em 1998. Mas eu estou em paz com ele, porque ele me escreveu uma palavrinha adorável depois de ter visto o meu filme La révolution sexuelle n’a pas eu lieu – eu o convidei para a pré-estreia. Fabrice era um cinéfilo imenso, mas ele estava mal consigo mesmo, mal com seu corpo, ele tinha um problema com as garotas. Havia em Fabrice um descompasso. Creio que ele é um personagem muito emblemático da relação de todos nós com a cinefilia. Sem dúvida, ele era o mais cinéfilo do grupo. Ele tinha visto tudo, ela estava na Cinemateca o tempo todo – porque um verdadeiro cinéfilo vai ver os filmes em tela grande. Ele conhecia tudo, era maravilhoso. E, ao mesmo tempo, era alguém que tinha uma relação afetiva com a vida muito complexa, sobrecarregada. Foi esse descompasso que fez com que, depois, a realidade batesse.

Letícia: Em relação à minha experiência enquanto cinéfila, no meio dos outros rapazes, eu me dei conta de que é muito complicado. Quando você conta tudo isso, a gente se reconhece muito.

Sabia que você parece um pouquinho com Axelle Ropert...

Ah, sim!? Nós temos uma história engraçada sobre isso (risos). Quando chegamos na França, nós fomos ver uma mesa redonda com Sylvie Pierre e Patrice Rollet, o comitê da Trafic... Em determinado momento, Patrice Rollet nos olhou e disse : "bom, nós temos agora Serge Bozon e Axelle Ropert na sala!”

Não, não é verdade? É uma piada?

Não! Mas Sylvie Pierre disse: “mas, não!” Então todo mundo riu...

Serge Bozon? Não, eu não acho. Mas você, tem realmente alguma coisa. E eu filmei Axelle, então é engraçado (risos).

Em A cruzada de Anne Buridan, não há necessariamente esse lado cinéfilo, ele está presente, de todo modo, mas não declarado. No entanto, trata-se de certa cruzada entre o íntimo e o político, eis o tema de Anne Buridan por excelência. E é também o tema de Moretti, penso, por exemplo, em Aprile, quando ele quer fazer um filme sobre os imigrantes e filma o nascimento de seu primeiro filho. Você sempre notou essa relação com Moretti, como uma herança? Poderia falar um pouco mais dele? De seu cinema?

Descobri o Nanni Moretti de uma vez em uma minirretrospectiva, acho que da Cahiers du cinéma. Foi antes de ele ser muito conhecido... Havia Io sono un autarchico, Sogni d’oro e Ecce Bombo, e na mesma época saiu A missa acabou. Era genial. E, para mim, Sogni d’oro é uma sumidade. Depois, e não foi responsabilidade minha, fui comparada a ele quando A cruzada de Anne Buridan saiu... Creio que foi Vincent Ostria e alguns outros que fizeram a comparação. “Uma pequena prima de Nanni Moretti”, foi dito. E eu o assumo mas, quando faço um filme, não tenho consciência de todas essas influências, não tenho a impressão de imitar todos os meus pares. Vou parecer metida, mas paciência... Yvonne Baby, justamente em relação ao Prêmio Georges Sadoul, tinha dito: “Judith Cahen, com A cruzada de Anne Buridan, retoma o cinema onde Godard o havia deixado”. Eu fiquei... (risos).

Mas é verdade que, nessa época, eu era muito godardiana, tinha visto realmente tudo o que podia de Godard. Não sei se vocês viram, mas a Cahiers du cinéma tinha dedicado seis páginas à Cruzada de Anne Buridan e, graças a isso, fui convidada a Hong Kong para um festival de jovem cinema europeu. Lá, descobri um monte de VHS dos filmes do Godard, filmes que não foram editados na França. Então, trouxe de Hong Kong esses VHS de filmes traduzidos em chinês, é extraordinário!

Nanni Moretti na Itália, mas, na França, é também o momento das autoficções, penso em Sophie Calle, Dominique Cabrera, Vincent Dieutre…

Escrevi sobre o filme da Sophie Calle: “No Sex Last Night, por Judith Cahen”. Fui encontrar a Sophie Calle, apresentamos o filme dela e eu mediei a conversa com o público.

A Cruzada de Anne Buridan se insere totalmente nesse movimento... Mas afinal, que movimento é esse? Você tinha a impressão, naquela época, de que era um momento interessante para as autoficções e para os cineastas-atores...

Em primeiro lugar, o filme de Sophie Calle é algo muito à parte, é um filme de artista, não é de modo algum o que saía nessa época. Se me permitem, há um jovem cinéfilo, com o qual talvez já tenham cruzado, que se chama Marc-Antoine Vaugeois, com quem comecei um trabalho e que me pediu para ver A cruzada de Anne Buridan. Então, passei para ele um DVD do filme e ele escreveu um texto muito bonito... Ele me disse que achava o filme muito atípico em relação aos anos 90, nem um pouco sintomático. De fato, a leitura dele é muito diferente da sua, ele viu muitas coisas dos anos 90 e achou que o filme se destacava.

O que gosto em A cruzada e, também, na Lettre du cinéma é que de fato escutamos sua voz ou a voz de uma mulher. É claro, há essa herança de Nanni Moretti mas, de todo modo, é uma mulher quem fala. Você diz frequentemente que gosta da ideia de Bernard Eisenschitz de fazer um filme enquanto empreitada de clarificação. Por exemplo, a primeira cena de A cruzada de Anne Buridan apresenta uma mulher que vai ao ginecologista e, por ser um homem, não quer fazer o exame. Isso é muito atual. E, com todas as mulheres que escreviam na Lettre: você, Hélène Frappat, Sandrine Rinaldi etc., eu me pergunto se, nos anos 90, era usual ou se era excepcional ter uma revista com tantas mulheres escrevendo.

Você enfatiza esse fato e é verdade, é legal. Não tenho certeza de que tínhamos consciência, era assim e era muito bom. E nós falávamos de feminismo. Quando fui para aquele grupo, Le couteau entre les dents, quis fazer um pequeno artigo em um dos Cahiers de résistance sobre a situação atual do feminismo. Então, fiz uma pesquisa sobre um grupo feminista que se chamava Les Marie Pas Claire[1]. Isso me interessava, mas o clima era claramente diferente.

Como era esse clima? Me pergunto, por exemplo, se havia ainda certa resistência em relação às diretoras ou às mulheres na crítica de cinema.

Para mim, é mesmo muito difícil falar disso... Acontece que eu fui palestrante na Femis durante os últimos anos e fui cooptada pela diretora da escola para participar de um grupo de reflexão que iria redigir uma carta sobre a paridade entre homens e mulheres, após o caso MeToo. Nas grandes escolas de cultura, deveria haver textos produzidos por comitês de reflexão, cartas... E senti um grande mal-estar em relação à nova geração de estudantes. Então, disse a mim mesma que era algo que eu deveria interrogar... E ainda não terminei de fazê-lo, mas identifiquei uma distância enorme. Porque, de certa maneira, a geração anterior à minha eram as feministas que lutaram. Lembro que, com a Hélène, estávamos mais criticando o feminismo delas, dizíamos a nós mesmas que ele era dogmático demais, que, enfim, elas não viam a sutileza da relação complexa entre os homens e as mulheres. E, ao mesmo tempo, saudávamos o feminismo: nunca fomos renegadas antifeministas. Da mesma maneira que tentávamos ver as falhas da esquerda, estávamos realmente na crítica à geração anterior e isso com as personalidades fortes que havíamos herdado.




Na Femis, nesse grupo pós-MeToo, tinha uma moça que queria que escrevêssemos na carta coisas punitivas em relação aos palestrantes homens, estes que fizeram comentários machistas. Por mais que eu ache que, efetivamente, precisamos ser muito firmes em relação aos gestos excessivos (as “mãos nas bundas”, como se diz), pois isso é escandaloso, eu me dizia: um cara um pouco machista, que tem deslizes de linguagem, é preciso trazê-lo para dentro, lhe dizer “ei, não fale assim!”. A moça disse: “mas por que sempre somos nós que devemos lutar? Por que somos nós que temos que nos esforçar?”. E, então, disse a mim mesma: “bom, estou perdida, não sou da mesma geração”. Tenho um pequeno lado anarquista que faz com que nós mesmos lutemos e com que não chamemos a polícia imediatamente. É um pouco caricatural, mas eu sempre me digo: “eu tenho que repensar tudo” (risos).

Então, sinto um certo mal-estar e avalio que é diferente. No fim das contas, penso que a verdade é que, na Femis, nos anos em que estive lá, havia muitas garotas, mas hoje não sei o que houve com elas... Existe até um artigo da Anne Villacèque sobre isso. De fato, sou membro da Cinemateca Francesa, como muitos, porque me propuseram depositar meus filmes lá e, portanto, voto na assembleia geral. O conselho de administração é extremamente masculino. E nem sempre vou votar, mas este ano olhei as propostas e vi que a Anne Villacèque, que era uma garota que estava na Femis, se apresenta. Ela fala de feminismo e escreve em um blog, após o caso MeToo, um texto sobre as jovens diretoras dos anos 90, as promessas não realizadas. Porque, na França, amamos os “produtos frescos”, é muito empolgante, “as jovens diretoras” mas, depois, quantas vão continuar estáveis? É muitíssimo difícil. Então, procurei imediatamente os dados da Anne Villacèque no anuário da Femis e escrevi para ela: “voto em você, você é extremamente corajosa”. Ela não foi eleita, foram os mesmos que voltaram para lá, ou seja, os mais conhecidos: Arnaud Desplechin, Olivier Assayas. E a única mulher que entrou neste ano foi a Claire Denis, porque ela foi convidada a se apresentar ao conselho de administração. De todo modo, isso diz o estado atual das coisas na realidade. Há portas que se abriram nos anos 90, mas, de fato, elas se fecharam parcialmente, nós topamos com os mesmos problemas. A realidade leva muito tempo para ser mudada.

Sinto também que A cruzada de Anne Buridan é um filme importante para os nossos dias.

Disponho de uma cópia em 35mm que, antes do confinamento, tive a oportunidade de projetar para estudantes, cineclubes, pequenos festivais e, a cada vez, os jovens espectadores reagem diferentemente e o filme lhes diz algo. É por isso que eu adoraria me dedicar a uma boa edição do filme, de sua visibilidade, mas infelizmente ainda não detenho os seus direitos.

Não sei se é o momento, mas vou dizer: acho que vocês estão se esquecendo de uma pessoa, que é a Éva Truffaut. Pois, mesmo sem ter escrito na Lettre, ela foi uma pessoa muito importante, como Yvonne Baby. Tínhamos um comitê de redação na casa da Éva Truffaut e, se estamos nos escritórios da Editora P.O.L., pode-se dizer que é graças a ela. Ela estava no Festival de Dunquerque quando estive lá com A cruzada de Anne Buridan. Ela adorou meu filme e quis me ajudar. Chegou até a investir dinheiro na Films de la Croisade.

Éva foi muito importante no início e no momento em que dissemos: “essa pequena carta não basta, precisamos fazer uma revista de verdade”. Foi ela quem aconselhou o editor Paul Otchakovsky-Laurens. E, para que pudéssemos conhecê-lo, ele foi convidado para uma projeção na Femis de A Cruzada de Anne Buridan. Lembro que também convidei a cineasta Jeanne Labrune e eles se conheciam, então estavam felizes depois do filme. Ele me escreveu uma carta muito bonita e nasceu uma amizade entre nós. Após esse primeiro contato, fomos encontrá-lo, Emmanuel Giraud, Julien Husson e eu, aqui mesmo nestes escritórios da Editora P.O.L., e ele foi favorável à edição da Lettre du cinéma, após o número que vocês chamam de “experimental”.

E me lembro de uma coisa muito importante, porque penso que há dois níveis de conflitos: há um nível intelectual, cinéfilo, que é sem dúvidas o que mais interessa a vocês, mas ele é também indubitavelmente articulado num nível afetivo. Na casa de Éva Truffaut, ele disse algo de que me lembro — ainda que tenha perdido a memória de muitas coisas, disso eu me lembro muito bem... Eu havia convidado os membros do Molokino, um grupo de cinema experimental, na época eles faziam filmes em Super 8 e projetavam os filmes em seus corpos, vestidos de branco, era magnífico. E David TV, um dos membros do grupo, um rapaz muito esteta, que tinha ideias mais “arte contemporânea”, ele estava em uma reunião do comitê de redação e, a certa altura, Axelle Ropert se enfureceu e lhe disse: “escute, David, La Lettre du cinéma não é a Artpress”, essa é uma réplica que vocês podem imaginar... (risos). E David não entrou na Lettre du cinéma, ele mesmo se afastou, porque entendeu que estava diante de cinéfilos puros e duros e que não era a mesma coisa... (risos) Mas, por outro lado, eu não discuti com a Axelle, porque havia entendido e amava muito essa cinefilia, mas tinha necessidade de outra coisa e foi por isso que fui para a dança contemporânea e o pointligneplan. A definição do pointligneplan era o cruzamento do cinema e da arte contemporânea, e esse é também o meu espaço. Mas eu havia entendido que não podíamos fazer tudo e que era melhor que a Lettre fosse radical no seu lugar.

Sim, mas, de todo modo, há muita arte contemporânea.

Sim, no início!

E o que você pensa da cinefilia queer não declarada da revista?

É muito interessante... Me arrependo de não ter trazido para vocês meu filme ADN. Havia convidado o pessoal da Lettre du cinéma para vê-lo em 2005, em uma projeção pointligneplan, e logo fui contatada por uma diretora da Femis que me disse que seu filho e a esposa dele, Aliosha Imhoff e Kantuta Quirós, estavam na sala naquela noite. Eles haviam criado um pequeno festival queer e achavam que meu filme era perfeito para eles. Eu não sabia que meu filme era queer, foram eles que me contaram: “ADN é um filme queer, é um filme que torce as fronteiras do gênero homem/mulher”.

Mas, no cânone da revista, a preferência é muito clara, se pensarmos na Diagonale, por exemplo. Mesmo do lado estritamente cinéfilo esse aspecto está sempre presente sem ser declarado.

Sim, mas penso que cabe a vocês dizer isso. E é verdade, concordo com essa perspectiva, mas não chegamos a formalizá-la assim. É uma pena, diga-se de passagem.




E é verdade que muitos redatores são também atores e, fazendo seus filmes, eles mesmos encenavam uns aos outros. É verdade que Serge Bozon... E por que Serge e Axelle estavam lá? Porque nós os “seduzimos” na Cinemateca. A Cinemateca ficava em Chaillot e eu e o Julien estávamos o tempo todo enfiados na Cinemateca, e haviamos realmente notado Serge e Axelle. Não dava para não perceber o Serge, seu visual já era alucinante e, além disso, era uma pilha elétrica de inteligência, um ator louco! E eu o embarquei na Cruzada de Anne Buridan como ator. Portanto, para mim, era realmente o ator Serge Bozon, assim como a Axelle, que me fascinavam. Eles eram estilosos, um casal magnífico. E, de quebra, eles estavam cercados por um grupo de mods (risos), eram todos “pop british” antes do tempo. Enfim, era extraordinário. Portanto, eram “flertes” de cinéfilos: nós nos víamos, nos medíamos com o olhar, tirávamos sarro um do outro, estávamos lá o tempo todo.

Por que você saiu da Lettre du cinéma?

Saí da Lettre du cinéma simplesmente porque é um trabalho enorme e totalmente voluntário, essas coisas, vocês devem imaginar. E eu queria me dedicar aos meus filmes.

Não havia conflitos?

Havia conflitos, sim, mas isso é uma outra história. Essencialmente, eu me dei conta de que era uma coisa que tomava muito tempo. Além disso, sou uma pessoa muito integral, então, quando dou minha energia, dou 200% e queria me dedicar mais aos meus filmes. Penso que o coração do conflito de que posso lhes falar sem comprometer ninguém e sendo honesta e sincera com minha posição... não é que eu fosse autoritária, mas eu era “metteur en scène” demais nas reuniões do conselho de redação. Ou seja, eu tendia a confundir essas reuniões com um set de filmagem, ainda mais porque eram meus atores que estavam lá também (risos). Então, eu era um pouco dirigista, ocupava muito espaço. Lembro-me de uma vez em que a Sandrine Rinaldi — e eu a agradeço por isso — me disse: “escute, Judith, acalme-se, há outras pessoas falando”. Eu tinha que entender que não podia ser metteur en scène... Então, entendi também que eu precisava ficar na minha. É preciso dizer também que eu fui muito exposta no início, porque havia feito a Femis e A cruzada de Anne Buridan em 95. Portanto, era eu quem estava mais sob os holofotes, mas também a mais atacada, como vocês devem ter visto na internet, os ataques foram avassaladores quando meu segundo filme estreou no cinema. Nós fomos muito mal vistos e esse filme, La révolution sexuelle n’a pas eu lieu, serviu de bode expiatório, as críticas foram de uma maldade... Eles atacavam a Lettre du cinéma através do filme e de mim: “Judith Cahen e seus amigos”.

Sim, eu vi, Positif e Libération caíram matando em cima do filme.

Mas eles não me puseram para fora, fui eu mesma que me disse: “sinto que estou confundindo os espaços, sou dirigista demais e vou me concentrar nos meus filmes”. O que foi um pouco complicado foi que depois tive o sentimento de que me esqueceram muito rápido, mas bem... Isso faz parte também da ideia de que cada um busca seu lugar ao sol e penso que houve uma defasagem entre as ambições, muito fortes, que todos nós tínhamos e o pouco de espaço que havia para acolhê-las. Infelizmente, essa defasagem é terrível.

Há nos textos esse medo da falta de espaço no cinema para os diretores...

Sim, escrevi sobre isso.

Você falou muito sobre uma frase de Rivette, que é: “no fundo, o filme só mostra a história de sua filmagem”.

Sim, eu e Hélène Frappat nos deleitávamos com essa frase.

E a história contada por A cruzada é, sobretudo, uma história de amizade. Sente-se que há um espírito de amizade muito forte nesse percurso. É a mesma coisa no início da Lettre, há uma relação intelectual, mas sente-se também uma relação afetiva.

Sim, enorme.

É muito claro, mas penso que isso mudou ao longo do tempo, as amizades foram...

Inevitavelmente... Mas, sabem, tenho realmente vontade de rever a Sandrine, a Axelle etc., mas, no caso dos amores, é mais complicado.

A Lettre du cinéma era bem recebida na época? Havia críticos, inimigos?

No começo, não éramos tão mal recebidos, mas fizemos uma mesa-redonda em que falamos mal de Arnaud Desplechin, que é um pouco o queridinho, e isso foi muito mal visto. E houve um efeito bumerangue: “quem eles acham que são para criar a revista deles? Para se acharem mais inteligentes que a Cahiers du cinéma?!”. Porque, de fato, nos sentíamos devedores da história da Cahiers du cinéma, mas o que a Cahiers du cinéma tinha se tornado, comprada pela Gan etc., para nós, ela vivia em cima de seus louros, sua reputação, mas tinha se tornado... nada demais. E nós pretendíamos criar movimentos, e não seguir os movimentos, pretendíamos influenciar os distribuidores, e não seguir a exploração comercial. Ao contrário, a Cahiers du cinéma apenas seguia a exploração comercial, um filme sai, escreve-se sobre ele, não são eles que estão nos lançamentos dos filmes. Mas não conseguimos, a verdade é que não conseguimos, não é só com o cérebro que se consegue as coisas, acho que éramos ingênuos em relação às reais questões de poder (risos).

Acho que isso também constitui a originalidade da revista, há muita liberdade, muita amizade, não se vê isso na Cahiers du cinéma. E há uma coisa de que gosto muito em vocês, na revista, que é essa política dos atores, fala-se dos atores de uma maneira rara.

Sim. Sobre isso, vocês viram que a Hélène Frappat está bastante na France Culture e faz programas incríveis em que fala dos atores e das atrizes. Penso que a Axelle continuou através dos filmes, e Hélène, através da France Culture. Acho que ela é frequentemente muito brilhante, permanece muito fiel a si mesma, com seu entusiasmo, sua energia.

A Sandrine também, havia algo de relativamente novo com as atrizes...

Sim. A Sandrine conhecia muito bem a Éva Truffaut também, ela escreveu sobre A cruzada, foi no Festival de Dunquerque. Estou retraçando para vocês a ligação com a Éva Truffaut, que não aparece, porque ela não queria escrever na Lettre, mas foi muito importante para o “agit-prop”.

[1]NdT: Trocadilho com a revista Marie Claire, literalmente algo como “As Marias não claras”.

Entrevista realizada por Letícia Weber Jarek e Miguel Haoni em 20 de janeiro de 2021.
Transcrição: Dalva Deshogues e Rafael Zambonelli
Tradução: Miguel Haoni e Rafael Zambonelli

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