Por Camille Nevers
O cineasta, autor de Boda branca e De som e de fúria, faleceu sábado aos 74 anos. Condenado por assédio e agressão sexual, ele deixa uma obra impiedosa e magnífica que ainda não acabamos de reabilitar.
Um dos maiores cineastas franceses está morto. Ele ingressou neste outro mundo dos grandes cineastas perdidos. "Aqueles por quem choramos não são os ausentes, são os invisíveis." Entre Victor Hugo, de quem a citação foi emprestada, e Simone Weil, o Marquês de Sade e o cinema milagroso de Murnau, procurem o homem, o último dos homens, procurem Brisseau. O grave e a graça, o miserável e a aurora, entre a grama alta e o horizonte, Jean Valjean e o porteiro uniformizado que, sob os traços de Emil Jannings no filme de Murnau, a multidão venerava ou odiava alternadamente, dependendo se a sorte lhe sorria ou se lhe batia com a porta na cara.
Procurem-no, este homem cuja vida teria sido dedicada exclusivamente ao cinema, que teria consistido em se ver como um espectador supremo e absoluto. Mais então, e é isso o que nunca lhe será perdoado, mesmo enquanto espectador impuro, que nos devolve a gentileza assim como Hitchcock o fazia, a acusação de voyeur, de ser torpe e de alma perdida que também cai sobre nós: se eu sou realmente culpado, olhem para vocês. Assistam os filmes. Como em Weil, a filósofa marxista e convertida ao cristianismo (A gravidade e a graça é expressamente citado em Boda branca), o cinema de Jean-Claude Brisseau vaga pelas trivialidades em íngreme declive e voos místicos, em busca de uma metafísica da liberdade. Infeliz, incondicional. Àqueles que nada viram, ou nada quiseram ver de seu cinema, à exemplo do feminismo mal intencionado quando Brisseau serve de álibi virtuoso aos trissotins[1] e tricoteuses[2], assim gritam novamente, pavlovianos, desde sábado ao anuncio durante a noite da morte do cineasta em Paris.
Como um desses personagens criminosos perdido em um paradoxo lógico e cinematográfico de Fritz Lang, Brisseau é mais uma vez, mesmo morto, analisado minuciosamente, insultado por aqueles que aos bandos gritam com os lobos e não tem outra coisa a dizer, “culpado!”, mascarando por trás de seus gritos suas próprias vilanias. E omitindo todo o resto, por exemplo que a culpa foi estabelecida, julgada, a pena sentenciada: as vítimas de seus assédios e da agressão sexual, as duas atrizes que em 2005 e depois em 2006 haviam obtido ganho de causa no final de um julgamento seguido de um recurso que condenava o cineasta a um ano de prisão com suspensão de pena, 15.000 euros de indenizações aos quais se somariam mais 5000 euros dos quais 4000 por danos morais a uma delas. Está estabelecido.
Como foi estabelecido ele pagou pelos outros, mais fortes, mais mundanos e mais desprezíveis. Polanski teve direito à sua retrospectiva no templo sagrado em novembro de 2017. O sacrifício no altar de uma “histeria de lunáticos”, para citar algumas palavras dispersas dos senhores na Cinemateca Francesa, foi a retrospectiva de Brisseau que iria aconter pouco depois. Ele pagou o preço do criminoso mais célebre. Ele pagou caro Brisseau, porque ele era pobre, sem produtor, estimado mas não famoso, genial mas não agradável nem muito apresentável. Ogro desleixado, gigante assustador com um brilho risonho no fundo dos olhos, olhos escuros e claros como uma fausse teinte[3], uma nuvem escondendo o sol como em um filme de John Ford.
Brisseau, o espectador que sonhava acordado com o mundo ao redor de si. Vejam os filmes: culpada inocência, não somente do voyeur, mas do grande cineasta passivo. E vivendo como tal: perverso e sem tocar, tendo prazer em ver mulheres que se acariciam em todos os seus filmes, consciente que o diabo o carregará, mas talvez a graça também. A companheira de seu alter ego cineasta em Anjos exterminadores (2006), seu filme- expiação depois que a justiça foi feita diz a ele que ele é "simplório". É isso: a inocência do idiota. E Brisseau estava bem sozinho, bem simplório, com a grande, a imensa Lisa Hérédia sua companheira, montadora, sua figurinista, sua faz-tudo e certamente sua melhor amiga, e que era três palmos menor do que ele. A solidão não o torna menos culpado, mas o torna um alvo mais fácil – para abandonar, para adiar por tempo indefinido. Será conveniente, piedoso, de requalificar a homenagem tarde demais: póstuma.
Autoficção
O que é evidente é a parte originalmente autobiográfica de seu cinema, não tanto na linha cronológica que ele concebeu, mas na imensa parte de confissão indireta, autoficção de homem (uma vez que se tenha rapidamente atribuído esse gênero às mulheres, para não dizer às “boas mulheres”[4]). No seu caso em particular seria necessário falar obra em autoficção de espectador. Com sua parcela, verdade seja dita, psicanalítica. Sua “Vida como ela é” para retomar o título de seu magnifico primeiro filme produzido dentro das regras (com a ajuda do Films du losange, de Eric Rohmer que logo detectou o jovem talento). “É”: o inconsciente, a parte freudiana da obra de Brisseau. A vida como ela é, como cinema e como inconsciente. A morte do pai em sua obra é fundamental. Coube a Bruno Cremer o incarnar como nenhum outro, espantoso assassino ou bruto estúpido, em Um jogo brutal (1983) e depois em De som e de fúria (1988). Em seguida uma terceira vez sob uma forma diferente de declinação, iniciando o “complexo de Lolita” de Brisseau ao lado de Vanessa Paradis revelada em Boda branca (1989, seu maior sucesso, sua maior estrela). A mãe, ela está decididamente ausente, ela deixa pequenos bilhetes na geladeira para seu filho. Em outras vezes são as geladeiras e todos os outros eletrodomésticos que despencam, jogados das janelas de um bairro social para confundir a polícia – tudo se inflama para que os amantes de Os indigentes do bom Deus (2000) possam escapar, mais para o sul, sob a luz pastoral de um perturbador curso de alfabetização entre a jovem mulher e o jovem homem, o início do mundo e do amor. A mãe, então, é sublimada por figuras de substituição, de professoras (Fabienne Babe em De som e de fúria) ou de guardiãs maternais (Geneviève, a extraordinária personagem interpretada mais uma vez por Lisa Hérédia em Céline), e de apaixonadas, uma chuva de anjos.
Jean-Claude Brisseau tinha uma fórmula para resumir de onde ele vinha: “o filho de uma empregada que viveu num sonho de cinema”. Nascido em Paris em 1944, sua vida é dedicada à escola e ao cinema, desde muito cedo, numa loucura compulsiva. Ele teria adorado estudar no institut des hautes études cinématographiques como os jovens bem nascidos, mas sem dinheiro – “em casa não tinha grana” - foi a educação pública que o permitiu viver e trabalhar durante muito tempo. Primeiro instrutor e depois professor de francês em Aubervilliers (Seine-Saint-Denis), do qual ele será o primeiro a se apoderar da conflagração, da violência e da graça, da situação das periferias. Para incarnar tudo isso, ele encontrara o magnifico e frenético François Négret, um ator único.
“Assim que foram lançadas as câmeras Super 8, em 1975, eu comprei uma”, ele disse em 2013 ao Télérama. Ele se torna cineasta amador no sentido próprio do termo, e seus filmes tratarão naturalmente de sua profissão, da escola, do fato de professar, de ensinar, como também de falhar em sua missão. Às vezes de sair abalado como sua reputação, tal qual o professor perdidamente apaixonado de Boda branca, filme de terrível previsão daquilo que acabaria atingindo o cineasta indigno. E culpado.
Brisseau, culto, cinéfilo obsessivo, orientado para o misticismo, as aparições de fantasmas e o esoterismo lembrando novamente Hugo, e filho de proletários que permaneceu pobre por toda a vida, tinha este lado selvagem de autodidata apaixonado, esse lado faz-tudo impressionante que colocava tudo em jogo pelo próximo filme, a próxima atriz ou o próximo ator (não esquecer das presenças masculinas inesquecíveis de sua obra), e por exemplo Sabrina Seyvecou com Coisas secretas (2002) revelada no deslumbramento do novo século, logo marcada com o selo da infâmia por um cineasta que prosseguiu com os meio e apoios que pode. Esses filmes de câmara, fazendo referência à musica, suas melodias azedas com uma mise en scène sempre tão suntuosa, de privação e desnudamento, assim o filme auge nos temas de morte e sexo, de suicídio e de graça estelar, premiado de um leopardo de ouro em Locarno, A garota de lugar nenhum (2012). Fabienne Babe, Sabrina Seyvecou, Lise Bellynck, Virginie Legeay, teriam amado, admirado e apoiado (ou perdoado?) Brisseau sem questionar. Lisa Hérédia, nos dias de forte perseguição e do isolamento ao desespero, esteve ao seu lado até o fim. Não foi fácil.
Brisseau, o cinema o enganou ou o engoliu. Em sua obra existe a rara impressão de que tudo, verdadeiramente tudo fora sonho de cinema e de existência misturados. E aliás, eis sua perversão sem perversidade, material para renovar um cinema permanente do qual ele personifica o espectador onipresente e aquele que mostra as sombras, mas queimado, queimado de corpo e alma nas chamas da dança, da coreografia e da orgia que ele organiza. O sexo e a morte, o místico, sua mise en scène inteira consiste naquilo que acontece com as visões: em renovar esta voracidade insaciável e passiva, em se afastar, em ser “todo olhos” como outros são todo ouvidos, do espectador. Tudo é propicio à graça alcançada e ao invisível. Às revelações devotas de jovens garotas que fazem perder a razão. “Mas você quer me deixar louco?” diz ele a Lisa Hérédia em Mediumnité (1978). E tudo é a arte do raccord, cujo paroxismo é o sentido absoluto do “falso raccord”, único meio de fazer surgir o fantástico, o fantasma ou a aparição, a levitação e a visão, no interstício. É a imperfeição do cinema desajustado de Brisseau que o torna prodigioso, irregular e perfeito, primitivo e puro.
Perdição
A história é sempre aquela do orgulho (disfarçado, como em Boda branca) confrontado à humildade (a enfermeira em Céline, por exemplo). E se o desespero é um orgulho disfarçado, levando com frequência ao suicídio, então sair do desespero é se livrar de todo o peso. Ou pulamos na água ou nos jogamos pela janela. Há sempre um personagem que sabe, que detém o saber, que coloca em baixo de sua asa um anjo, um anjo negro, inocente e às vezes iletrado, doente ou em mal estado, querendo o ajudar. E então sombrio no amor, numa perdição até a morte e na violência (o assassinato, em Coisas secretas). O conhecimento através de abismos. Aquele que sabe (o professor, a stripper, a enfermeira, o cineasta) o que ele aprende que antes ignorava? A paixão. A perda. O crime. Ele se surpreende de não saber mais nada além da separação, da dor de toda separação.
Os filmes registram portanto fenômenos curiosos, de transfusão, de entrega, de impregnação (termo que Brisseau amava usar) entre os corpos, entre os personagens: o poder erótico é antes de tudo um poder mágico. O sobrenatural dá um passo para fora do naturalismo, miragem panteísta de um amor incompreensível condenado desde o início. O milagre é o poder de dar, como Geneviève, o que não existe em alguém que já tem tudo – e que ainda assim definha. E nos deixará. Transmitir aquilo que se sabe ao eleito que tem o dom, e que o ignora. O amor permanece inteiro nesta troca pálida e injusta. É por isso que Céline contém surpreendentemente toda a obra de Brisseau, o último dos injustos.
[1] Personagem ridículo, pedante e vaidoso de As eruditas de Molière. (Neste texto, todas as notas são do tradutor).
[2] Expressão que faz alusão às mulheres do povo que, durante a Revolução Francesa, assistiam às sessões da Convenção Nacional e do Tribunal Revolucionário enquanto tricotavam.
[3] Trata-se de um termo para definir a variação da luz solar durante a filmagem. Ocorre quando o sol está coberto por uma nuvem no meio de uma tomada, causando um problema de raccord cromático.
[4] No sentido figurado, que é muito mais utilizado do que no sentido literal, a expressão é carregada de desprezo e qualifica uma mulher que não pensa com sua própria cabeça e que não tem vontade se não a do marido.
Brisseau périlleux foi publicado no jornal Libération em 12 de maio de 2019 (Brisseau périlleux – Libération (liberation.fr)). Tradução: Evandro Scorsin.
caros. uma correção: é A gravidade e a graça, não o grave e a graça. Nevers cita Weil.
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