Por Pascal Bonitzer
“Essa coisa amedrontadora, indescritível, mais vasta que qualquer trem subterrâneo, esse aglomerado de bolhas protoplásmicas, levemente fosforescentes, sobre o qual milhares de olhos provisórios se formavam e deformavam, como pústulas de luz esverdeada, essa coisa vinha em nossa direção enquanto esmagava os pinguins aterrorizados...”. Os leitores de Lovecraft terão facilmente reconhecido um Shoggoth. Mas alguns espectadores da Biennale terão provavelmente identificado também nessa entidade ameaçadora o último filme de Glauber Rocha, A idade da terra, ou pelo menos a impressão que ele causou em Veneza. Os pinguins, nesse caso, são os espectadores, entendidos em sua carapaça moral.
É mais fácil descrever a impressão causada pelo filme do que o filme em si mesmo, assim como é mais fácil para o narrador lovecraftiano descrever o afeto provocado pelo Shoggoth do que o aspecto da criatura. À semelhança do narrador em questão, temos vontade de escrever: “Todas as palavras que eu poderia esboçar seriam incapazes de sugerir ao leitor o horror do espetáculo assustador que a nós se ofereceu”. Espetáculo ao qual, evidentemente, não falta grandiosidade, no mínimo – o que não foi o caso de muitos filmes da Biennale, incluindo os premiados. Mas não se premia um monstro; ou fugimos dele ou o matamos. No geral, foi o que fizeram ambos os espectadores, a imprensa, o júri. E mesmo isso sendo compreensível, é de se lamentar, pois destruímos aí uma boa parte das chances (se é que o termo chance seja adequado) de ver na Europa essa obra estupefaciente.
A idade da terra, como seu nome sugere, visa a nada menos do que retraçar ao mesmo tempo a história do mundo e a do Brasil — antiga e recente — a tomar simultaneamente a medida desse país-monstro, desse país-continente, e da política planetária. Não pense que isso signifique que as análises são abundantes. De um extremo a outro desse filme, salvo um ou dois oásis de algo próximo da racionalidade jornalística, o ponteiro do medidor não para de oscilar entre o transe da macumba e as vociferações mais assustadoras. A câmera parece guiada pelos tocos putrefatos de alguma fungosidade blasfematória (para permanecer no estilo lovecraftiano). Se o foco está em algum lugar, ou a luz, ou o quadro, presumimos que é por acaso. Some-se a isso uma montagem de selvageria inaudita, uma montagem de assassino, de louco da machadinha. O diretor aparece na imagem uma ou duas vezes, para mostrar um rosto de condenado, disferir no vazio um violento golpe de facão ensanguentado.
Quanto ao discurso, ao “sentido”, o que dizer dele? Todos os enunciados atravessam a tela como se passassem por um triturador: revolucionários, marxistas, terceiro-mundistas, fascistas (e dos mais asquerosos: ironia sobre as torturas, “fui torturada, extremamente torturada, e confesso que senti prazer”, diz uma jovem mulher, símbolo da burguesia intelectual de esquerda), enfim, umbandistas e cristãos. O Cristo aparece sob a aparência de um negro do sertão, que multiplica Coca-cola. Estranho, estanho filme, que faz com que os anteriores do autor pareçam exercícios comportados e pálidos. Nunca tinha sentido, em presença de um filme, tamanha impressão de me achar diante de uma terra incógnita absoluta, esse enigma, o terceiro mundo. Nenhum outro filme, além desse de Glauber Rocha, havia me dado esse sentimento de estrangeirismo continental.
Mas também de singularidade desesperada, de solidão trêmula. Essa monstruosidade atravessada por clowns alegóricos gritando sem parar as mesmas frases, como em planos-sequência que não terminam, essa destruction in progress, o autor a tenta definir, em off, no meio do filme, numa torrente verborrágica. Retive duas palavras: desespero lisérgico. “Um filme de desespero lisérgico”. Provisoriamente, podemos nos agarrar a essa definição.
Amouk, l'âge de la terre foi originalmente publicado em Cahiers du Cinéma, n. 317, nov. 1980. Traduzido do francês por Luiz Carlos Oliveira Jr.
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