Por Michel Mourlet
Duas lembranças muito vivas, ardentes como queimaduras. Elas datam contudo de um quarto de século.
Eu estou com amigos na Cinemateca Francesa... No programa: O Tigre de Bengala. A sala, cheia de intelectuais presunçosos, prolixos, desses que só encontramos na França e na Itália, me parece. Seguros de uma verborreia com a qual eles revestem o mundo para entregá-lo inteligível como a jiboia umedece sua presa para engoli-la.
A todo momento, e de preferência nas cenas mais belas — as mais pungentes na sua conclusão, sua simplicidade, sua evidência — eles riem. Eles riem à vontade, ignobilmente, convencidos de assistir algum desenho animado ingênuo que está na função deles colocar no seu devido lugar. À distância que convém.
Ainda hoje, eu não vejo outro comentário para essa experiência que o verso do prólogo de Zaratustra: “Amor? Criação? Desejo? Estrela? O que é isso? — Assim pergunta o último homem, num piscar de olhos.”
A queimadura da segunda lembrança é menos penosa. É no fim dos anos 1950, no hotel George V, na suíte ocupada por Fritz Lang que estava de passagem em Paris. Ainda que eu já lhe tenha feito alusão em outro momento 1, esse episódio me parece muito significativo para que não seja inútil esse retorno.
Eu encontrava, então, Fritz Lang pela primeira vez, pouco tempo depois da estreia do Tigre e do Sepulcro Indiano. A imprensa parisiense tinha prestado contas com sua perspicácia costumeira: turquerie... indiana, roteiro absurdo, romance barato, obra alimentar, etc. Ignorando sem dúvida o detalhe que, ninguém se perguntava como, no fim de sua vida, um dos maiores cineastas do mundo teria desejado fazer assim uma obra medíocre circunstancialmente, a partir de uma história na qual pensava desde 1919, data da primeira versão do roteiro escrito em colaboração com sua esposa Thea von Harbou.
Durante a filmagem, em resposta às questões dos jornalistas, Lang declarava: “Por que eu rodo esse filme? Para mim, algo de místico está em jogo. Um círculo se fecha: o que eu tanto desejei há quarenta anos se realiza enfim hoje, de maneira surpreendente.” E ele sublinhava: “Eu não saberia fazer um filme com desenvoltura. Eu não vejo como poderíamos conduzir com desenvoltura uma empreitada que dura cinco a seis meses e na qual pensamos todos os dias.”
Um ano mais tarde, no hotel George V, Lang, tenso, cauteloso, monóculo encaixado na órbita, eriçado em arames farpados. Ele tomou conhecimento das críticas. Ele conhece a opinião da intelligentsia sobre O Tigre e O Sepulcro. Sua técnica é simples: minimizar sua obra, seguindo a manada. Inquieto com minha audácia, eu exprimo então, sem maquiá-la com nenhuma precaução oratória, minha admiração. Seu rosto impassível torna-se corado, o monóculo se embacia. Ele balança a cabeça. Os arames farpados caem. Dialogar seriamente, honestamente se preferirmos, se tornava possível. Um diálogo que continuou mais tarde, particularmente em Mannheim, e em companhia de Pierre Rissient.
Se eu evoco esses instantes, é para fazer sentir o que poderia ser, há vinte anos, o deserto do amor do cinema. E mesmo em 1970, se escreviam coisas como estas, em uma monografia consagrada a Fritz Lang: “Esse script (o das duas épocas do Sepulcro Indiano) brilha pela sua estupidez, sua insignificância, sua obsolescência. Somente a renúncia final do Maharadjah, coincidindo com a sabedoria do velho cineasta, parece testemunhar um pouco de seriedade.”
A ideia simples segundo a qual o essencial do sentido veiculado por um filme reside na própria matéria do filme, sua “mise en scène”, não tinha ainda percorrido seu caminho pelas mentes. A tal ponto que para muitos essa concepção dizia respeito a um “estetismo gratuito”, ou mesmo a uma religião esotérica. Porém, se existe uma obra a qual ela se aplica integralmente e, poderíamos dizer, sem nuance, é a de Fritz Lang, desde a origem até o fim.
Só variam, nessa obra, o estilo e o conteúdo da mise en scène, do expressionismo arquitetural até a interioridade absoluta, do cenário até a planta, evolução que eu tentei descrever em Trajetória de Fritz Lang. Mas o papel e a importância atribuídos a essa mise en scène não variam. Trata-se de dominar através de uma lógica implacável todos os elementos de um universo no qual entram histórias, temas e palavras, porque não há universo sem temporalidade, logo sem história, história sem tema, tema sem linguagem, ainda que o conteúdo desses elementos esteja englobado, assimilado, conduzido pelo movimento geral da sua organização no mundo sensível.
Assim, Suplício de uma alma é uma história policial que questiona a justiça e mesmo, por que não, a pena de morte. Mas se nos detemos nesse nível de significação, nos colocamos exatamente na mesma postura do erotômano que cobre suas paredes de mulheres nuas, porque elas estão nuas e não porque elas são pintadas. As peripécias e o resultado da batalha de Vitória não fazem parte, para muitos, do interesse que temos pela obra de Beethoven coroada com esse título, que, contudo, se impulsionou na vitória de Welligton. Entretanto, em 1956, em 1970, ainda hoje sem dúvida, há “especialistas” para definir Suplício de uma alma como um questionamento da justiça, o que não é absolutamente, ainda que Lang quisesse talvez questionar a justiça e que, de qualquer maneira, esse era o ponto de partida, conexo à intriga.
O ponto de chegada está em outro lugar, como é evidente depois de um percurso. (Não refletimos muito sobre essas evidências.) Está em outro lugar também, depois do trajeto de Maharadjah, do roteiro do casal Thea e Fritz até as imagens cristalizadas do senhor emotivo que se liberta brutalmente, sem avisar, do peso da sua fúria contida, de sua amarga serenidade.
O ponto de chegada, o resultado sinfônico do processo de integração de todos os elementos de base, a obra enfim, está nos gestos, nos olhares, nas entonações dos atores, os contatos das suas sensibilidades com o cenário, está na trama de sons, no claro e no escuro, e mesmo no choque ou na harmonia das cores, na posição da câmera, na dinâmica do encadeamento dos fatos e dos planos, na definição desses últimos, o universo sentido, contemplado, denunciado por toda a experiência de uma vida. Eis o “texto” de Lang que devemos decifrar. O que não impede de maneira alguma de apreciar a história, a anedota, o conto, esqueleto indispensável à formação e à sustentação dessa carne, o conjunto — indissociável — constituindo uma narrativa, fim último de todo empreendimento narrativo, como deve ser.
Façamos um resumo. O primeiro nível de leitura é a anedota narrada; o segundo, o tema ou os temas que a subentendem; o terceiro, a mise en scène, os temas que ela implica, que se encontram nos outros filmes do cineasta e que são a parte menos consciente, a mais reveladora das obsessões (ou, em um cineasta medíocre, das ausências). O erro, certamente, consistiria em crer que só esse terceiro nível importa, da mesma maneira que se pretende, às vezes, que em um grande romance a intriga é secundária ou que os libretos de ópera são negligenciáveis. O que esperamos de uma narrativa ou de um espetáculo são personagens face aos quais podemos nos mensurar, que se confrontam eles mesmos com acontecimentos que nós vivemos, ou amaríamos, ou que tememos viver.
Mas ainda é preciso, para crê-lo, para que ele abale sentimentos e ideias em nós, que a atrelagem pessoas-acontecimentos seja a mais rica possível, a mais carregada de conotações e implicações. Essas terminam, algumas vezes, por prevalecer sobre o enredo. É o caso em Fritz Lang. Mas sem enredo, sem coluna vertebral, elas não teriam a mínima chance de existir, como constatamos nos filmes, nos romances, nas obras de teatro que se recusam a fazer sair “a marquesa às cinco horas”.
Isto posto, se a carne exige a ossatura, ela não deixa de ser a carne que tocamos e que nos comove. Ela é também o que mais se esquiva da análise. “O que há de mais profundo é a pele”, afirmava Valéry.
O que há de mais profundo nos filmes de Lang é uma certa maneira de olhar de muito longe, como do fundo da morte, os homens, as mulheres, o homicídio e a fatalidade. Nos seus quatro ou cinco últimos filmes, não distinguimos mais que isso. Se não percebemos esse tom de eternidade, não percebemos mais nada. O silêncio e o vazio. Enredo, personagens desaparecem atrás de algo muito monstruoso que se assemelha a um desprezo tingido de ódio, global, exaustivo e fúnebre, entre os homens, do mundo para os humanos, de Lang pelo universo. Um desejo insaciável de dominação total, legível nos olhares, se resolve no assassinato, ou na contração. O Lang das profundezas: um “grande alucinado pelo poder absoluto”, como disse Jean Parvulesco. Ele encontra um exutório no controle maníaco de todos os detalhes de um filme. Governa o tempo para fazer dele um rolo compressor. Assassino por meio de atores interpostos 2. Traz consigo, durante quarenta anos, o personagem de Mabuse e o ressuscita para suprimi-lo em sua última mensagem, depois de ter realizado graças à técnica moderna sua vontade de domínio e de possessão pelos olhos.
Assim coincidem exemplarmente, em Die Tausend Augen des Dr Mabuse, a estrutura de um roteiro e a obsessão permanente de uma mise en scène, fundada ora sobre a possessão à distância, ora sobre a distância que separa da possessão.
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1 N.R.F., especial Henry de Montherlant, fevereiro de 1973. Texto reproduzido in L’Éléphant dans la porcelaine (La Table Ronde, Paris, 1976).
2 “É possível que cada um de meus filmes em que o crime é representado com o máximo de horror representa, da minha parte, um assassinato virtual. (...) Às vezes isso me tortura, mas por vezes também diverte-me pensar que eu sou um assassino em potencial” Fritz Lang, Los Angeles Herald Express, 1947. (Citado por Alfred Eibel in Fritz Lang, Éd. Présence du cinéma, Paris, 1964.)
Fritz Lang, mode d'emploi foi publicado em Sur un art ignoré - La mise en scène comme langage, Henri Veyrier, 1987. Tradução: Letícia Weber Jarek.
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