O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

O lugar de memória mais belo


Visão geral sobre Gente da Sicília de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet 

Por Mehdi Benallal 

O que eles fizeram do romance de Elio Vittorini? Eles escolheram os seus fragmentos, os respeitaram, trabalharam neles, lhes entregaram ao ar livre e às vozes dos seres vivos. Voltaremos a isso. Será talvez Louis Seguin, que escrevia no seu importante livro: “[Jean-Marie Straub e Danièle Huillet] não estabelecem uma segunda narrativa que garantiria a verossimilhança, a vida da ficção original. O cinema não cura a infelicidade do romance mas, pelo contrário, a secciona e deixa a ferida aberta. Ele abre buracos no texto. Ele isola, para empregar um vocabulário que é caro à Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, os ‘blocos’. A decupagem retorna ao seu sentido mais literal: ela talha, ela corta. Não se trata mais de imitar, de comentar ou de ilustrar, mas de abrir na escrita orifícios imprevistos, aberrantes. A visão é uma violência.[1] 

Com esse filme, mais uma vez, o cinema de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet prova ser um dos últimos, um dos únicos, a exigir de nós que nos lembremos – que seja a nossa memória que faça o esforço, sem o qual não adianta querer nada. 

Quando a mãe de Silvestro, na casa dela, conta como ela amou um homem, e que longa estrada este homem pegava para encontrá-la, e como este homem foi talvez assassinado, no fim, ela se interrompe, seu rosto não se vira, não se abaixa, não acrescenta nada ao que acabou de ser contado exceto uma concentração que se esquece. É que aqui as lembranças da mãe obrigam ao silêncio. Esse silêncio é justo porque é verdadeiro: quem já escutou sua mãe, ou alguém mais velho, lhe pintar as coisas passadas o conhece. Esse silêncio, Silvestro o “inquisidor” (a palavra é do próprio Straub) não saberá rompê-lo. Pois vimos a gruta no começo de Othon, na qual, durante a Segunda Guerra Mundial, os comunistas escondiam armas, os Alpes apuanos em Fortini/Cani, onde morriam os resistentes, e a montanha Santa Vitória em Cézanne, mas o mais terrível, o mais belo lugar de memória, é o rosto humano mergulhado numa lembrança. E isso, em Gente da Sicília, os Straub filmaram. 

[1] Louis Seguin, "Aux distraitements désespérés que nous sommes..." - Sur les films de Jean-Marie Straub et Danièle Huillet, Toulouse, Ombres, 1991.

Le plus beau lieu de mémoire foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma n° 10, verão de 1999. Tradução: Miguel Haoni. 

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