A propósito do cinema de John Carpenter
Por Julien Husson
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A frontalidade é a arte de pôr em relação e não tem nada a ver com um antagonismo “simplista” ou um dualismo “idealista”. Ela não opõe um maniqueísmo de meia-tigela à marcha do mundo. Ao contrário, utiliza a evidência, a potência e a imprevisibilidade da ficção: ela desdobra, sem virtuosidade, a multiplicidade das trajetórias individuais e dispõe os obstáculos segundo uma lógica a cada vez recomposta. Então, ela desvia, matiza e difrata os contornos das questões que nos atormentam para restituí-las na clareza mais cegante. A cada vez, ela descreve a nova gama de tons e de cores que enfatizam nossa dificuldade cada vez maior de levantar a voz. Assim, sem abalar-se ela projeta o espectador diante do único imperativo: de que ainda sou capaz e sob que condições? John Carpenter é o mestre da frontalidade no cinema: sua obra é uma insistência longa, incontestável, indispensável e paciente em um mundo que não quer mais se reconhecer nela.
“Suspicious Mind” (Elvis Presley)
Em John Carpenter, a frontalidade não permite particularmente “trabalhar os gêneros” nem “inovar no interior de uma limitação”, como os jornalistas se comprazem em lembrar a cada novo opus. Ela é ao mesmo o tempo o germe, a forma e a suspeita (de fantasia, de ira, de melancolia) a partir dos quais uma história poderá inventar seu sistema de oposições, mas sempre plural, e em busca do critério que permitirá estabilizá-lo.
Frequentemente, Carpenter ataca, por exemplo, os “aniversários” e outros feriados, objetos de suspeita por excelência. Halloween, A bruma assassina, Christine, o carro assassino, Vampiros de John Carpenter são para ele a ocasião de lembrar diretamente a revolta, o acontecimento macabro ou a espoliação que as cerimônias comemorativas ou o mito de uma idade de ouro se esforçam sempre para recobrir. Aqui, o que está em jogo é a arte, para um cineasta, de ser genuinamente “contemporâneo”, de “marcar a data”, no instante em que filma, e com a preocupação constante em relação aos espectadores aos quais se dirige. Engajando-se no caminho necessariamente minado da desmitificação, ele afronta sem tremer as potências mortíferas da nostalgia ou da lembrança e libera pouco a pouco as condições sob as quais o critério do que hoje nos é intolerável poderá aparecer.
A operação que decorre disso é de grande simplicidade e um prazer para o espírito: ao longo de uma história e dos fantasmas que ela desenterra, alguns personagens se desenham, em uma espécie de lentidão atenta e elegante, e sua “missão” volta sempre, de uma maneira ou de outra, a definir os termos em que se poderá fazer justiça ao acontecimento até então camuflado ou denegado. O “julgamento” nunca é inteiramente satisfatório, pois o direito nunca regula nada senão a questão do culpado. Ele permite, contudo, que os personagens principais tomem distância em relação à trajetória que lhes fora imputada. Nesse sentido, eles escapam, mesmo que provisoriamente, da reprodução de um comportamento herdado (uma maldição, se se quiser): a tentação do mimetismo e da repetição na História, a fatalidade da contaminação, tornam-se, desde que cada um se esforce por encontrar os critérios de sua ação, o pretexto para combater, sem chorumelas, uma forma de histeria muito contemporânea.
Karen Allen, em O homem das estrelas, descobre pouco a pouco as modalidades pelas quais — sob a direção genial de Jeff Bridges, que a força a definir sistematicamente os elementos de nossa realidade — ela poderá se arranjar com a morte do homem de sua vida sem fazer sacrifícios à fantasia deletéria de sua ressurreição e da inseminação post mortem (ele está mesmo morto?). Ao estágio inicialmente necessário da imitação, sem o qual Jeff Bridges, extraterrestre em trânsito na Terra, jamais acederia à aparência de humanidade, sucede, pois, o estágio da relação, sem o qual Karen Allen jamais poderia se fazer justiça e contornar a espera que faz obstáculo ao luto. Em outras palavras: à infância, que é também o aprendizado do movimento, sucede enfim a idade do homem, que é também o aprendizado da emoção no tempo: dois corpos “apaixonados” se entrelaçam em um trem de mercadorias que se encaminha lentamente, eles creem (pois saíram da suspeita), à destinação esperada — eis toda a beleza do sentimento ilusório do tempo, no instante em que o amor ao mesmo tempo o suspende e o garante.
A “máquina de matar”
Cada personagem é a própria expressão cinematográfica da arte de Carpenter: a suspeita, e a frontalidade que ela engendra, dão o sentimento do acontecimento do tempo, na própria destruição, no assassínio progressivo, de tudo o que conspira hoje para suprimi-lo. No entanto, não há aqui nenhum idealismo dialético, nenhuma operação de montagem por meio da qual nossa época, denunciada sem nuanças, superaria a si mesma na utopia de um Éden reconstituído. Ao contrário, Carpenter se mantém, por decisão própria, na “zona cinzenta” que impede estritamente a assimilação da guerra de tal personagem, de tal filme, à vitória (mesmo que negativa) sobre a adversidade. Ele deixa o pitoresco do triunfo para a indústria hollywoodiana e prefere fuçar em torno da ironia, da profusão do combate sem fim, em que se amarram um gosto pelas coreografias chinesas (Tsui Hark) e uma defesa do “American Spirit” (Fuga de Los Angeles).
Nesse mundo, que remete diretamente e sem metáfora ao nosso, os caçadores tornam-se os caçados se for preciso, desde que a trajetória que eles seguem os leve a um outro estado de corpo e de espírito. É por isso que Christine, o carro assassino põe com tanta acuidade a questão da “provação”, que significa ao mesmo tempo reprimenda, advertência e passagem. Arnie, animado pelo ódio das vítimas, passa demasiado bruscamente para o lado dos assassinos e, então, entra inadequadamente em guerra consigo mesmo por ter querido jogar com uma força que ultrapassa a sua própria. Pelo menos sua guerra terá permitido que dois pombinhos mais aguerridos se encontrassem e desconfiassem do mito americano do automóvel e do rock’n’roll. E o risco da morte foi integralmente assumido por Arnie. Quando ela sucede é para consolidar ainda mais o imperativo da luta: nunca é o plano da “realidade”, por mais cruel que ela seja, que se deve mudar, é a maneira de sobrevoá-lo e a vigilância sem fim que ela implica. Valek e suas asas de morcego (Vampiros de John Carpenter) não podia compreendê-lo, Snake Plissken e seu aerólito vampírico feito à mão (Fuga de Los Angeles) ou seu planador furtivo (Fuga de Nova York) o compreendeu bem.
Carpenter tornou-se especialista nessa reciprocidade dos estados em que o caçador nem sempre é quem pensamos: predador e presa precisam um do outro, ao ponto de por vezes serem os dois ao mesmo tempo. A montagem extraordinária da refeição “fracassada” entre Lauren Hutton e seu plácido amante “filósofo” (Alguém me vigia) é a ilustração perfeita disso em um registro, contudo, muito menos espetacular. A mistura de desconfiança e de atração muito antiga entre dois seres nunca foi tão bem pensada quanto nessa construção em “tesoura”, que, por ocasião do diálogo, todavia, confiante entre um homem e uma mulher e por intermédio de dois travellings para trás sucedendo-se em igual velocidade, denuncia um movimento irrefreável de evitamento. À máquina política que nos expõe brutalmente à adversidade, Carpenter responde sempre pela máquina cinematográfica que junta a necessidade vital de combater e a dificuldade de identificar “o inimigo” (essa atração) com certeza. Imagem de um cão-lobo que corre na fronteira indecisa das montanhas e das nuvens sob a saraivada de tiros de um helicóptero sem origem (O enigma do outro mundo). A zona cinzenta do cinema de Carpenter nos ensina, não sem violência, que nenhuma razão, nenhum “reconhecimento”, nenhum “saber” nos darão de partida a capacidade de distinguir o perigo, de ver a estrela que nos move. (Mesmo Jeff Bridges leva tempo para encontrar a estrela de onde vem e à qual retornará…).
A construção do litígio
Decididamente, não se deve confundir frontalidade e simplificação. Em Carpenter, a frontalidade é sutil e complexa por pelo menos duas razões e, em primeiro lugar, porque ela é produção.
Os filmes menos bons de Carpenter são precisamente os que evitam produzir seu questionamento e se contentam em aplicar uma teoria do afrontamento sobre o universo que interrogam. A comunidade de O enigma de outro mundo, obra tristemente refrigerada, só existe pela oposição grand-guignolesca entre um aglutinamento de “tipos” assustados, sem vida própria, e um amontoado inquebrável de tecidos agressivos de propriedade viral: não vejo nada aqui que permita sair de uma oposição em espelho e da colisão sem mistério entre duas estruturas igualmente “totalitárias”. A loucura en abyme de À beira da loucura dá tão cedo, e em uma tal escalada de efeitos arrepiantes, a chave de seu frenesi paranoico que ela perde completamente a desumanidade, a geometria inquietante e inassimilável do Necronomicon de Lovecraft. Toda sutileza estratégica se apaga em benefício de uma composição muito decepcionante, falsamente “espiralada”, que deve mais às leis do jogo em CD-Rom que ao cinema (por exemplo, a tripla tentativa de Sam Neill de escapar de carro da Mainstreet, repleta de zumbis, de Hobb’s End, e o retorno sistemático ao ponto de partida — só falta a voz off sintética que reiniciaria o jogo com um magnânimo “Try again”…).
Sem dúvida, essas falsas pistas podem ser explicadas pelo contexto limitador, no caso, em que Carpenter realizou esses filmes. No entanto, elas pesam muito pouco diante da concisão completamente maníaca com a qual o cineasta encena suas histórias, ou seja, produz a questão que as sustenta.
Quem além de Carpenter soube hoje restituir com tanta potência o sentido primevo do termo “créditos” (do filme)? Três planos perfeitamente agenciados e a música de chumbo que os acompanha bastam não apenas para fazer sentir o Terror que mata esse padre estirado em seu quarto e a Força que o obriga a descerrar misteriosamente os lábios, mas também para sugerir a luta titânica que, para sua infelicidade, ele teve que travar sozinho com o Príncipe das Trevas. O que se engendra aqui é a dinâmica de uma trajetória como que comprimida por tempo demais, que talvez se alivie ao termo da investigação em torno de uma morte, mas cujo princípio jamais deixará de atormentar seus espectadores. Essa força de construção pode ser encontrada, em sua adequação ao tema narrativo, em cada um dos outros filmes de Carpenter. O grafismo dos créditos iniciais à la Saul Bass de Alguém me vigia, a aproximação inexorável de uma lanterna diabólica em Halloween ou ainda a heterogeneidade das trajetórias que desvelam inesperadamente o corpo de Roddy Piper no início de Eles vivem são tantos signos, de uma densidade que confina ao símbolo (no sentido etimológico do fragmento que exige seu “duplo”, sua contrapartida, como uma sequência lógica e sem obstáculos), a partir dos quais a máquina cinematográfica desdobra sem falha, e movida unicamente pela virtude de tal incipit, a própria verdade de sua investigação.
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Mas a construção do litígio, em sua frontalidade, não é somente produção (de uma dinâmica, de uma rede de signos). Ela é também uma arte da delimitação. Como todos os grandes cineastas, Carpenter mostra uma propensão regozijante a encenar a inquietude da espécie humana — “o medo suscitado pela irreparável unicidade do ser vivo”. Em resposta a esse medo, os personagens se incitam frequentemente a circunscrever um espaço de modo a torná-lo habitável e a abrir-se a possibilidade de uma experiência individual. A estabilidade, mesmo que provisória, das relações intersubjetivas obriga, em primeiro lugar, a dominar a clausura, em todos os sentidos do termo*. Trata-se, por exemplo, de definir e proteger as fronteiras de um lugar fechado: nave espacial naufragando (Dark star), delegacia, casa, igreja ou vilarejos sitiados (Assalto à 13ª DP, Halloween, A bruma assassina, Príncipe das sombras, A cidade dos amaldiçoados), guetos políticos e bairros em ebulição (Fuga de Nova York, Fuga de Los Angeles, Os aventureiros do bairro proibido). Trata-se também e mais fundamentalmente — é algo que nunca é assinalado — de proteger, ou se proteger de, a grávida por excelência, o agente de predileção da “unicidade do ser vivo”: a mulher! Misteriosamente designada para dar à luz, ela é ao mesmo tempo receptáculo de todas as inquietudes, enfrentando a misoginia dos machos que giram em torno dela e depois a rejeitam – Elvis, Os aventureiros... – e chance de elevação, exemplo de determinação fria a resistir, a transpor a adversidade — Assalto, Halloween, A bruma assassina, A cidade dos amaldiçoados… Em Carpenter, todas as heroínas se chamam Leigh… Frequentemente frias e cáusticas, intrépidas e frígidas, belas e decididas (Lauren Hutton, Jamie… Lee Curtis, Janet… Leigh, Sheryl… Lee), elas se opõem sem tremer muito ao espectro do Ser Vivo que ameaça aniquilar-nos e retomam in extremis seus espíritos no exato instante em que o Espírito… maligno parece conquistá-lo (por exemplo, a extraordinária cena final de Halloween). Biologicamente determinadas a salvar a espécie e, por vezes, até o limite da ambiguidade (a professora da Cidade dos amaldiçoados), as mulheres também são, na maior parte do tempo, as representantes da ordem social: voz de computador, locutora de rádio, jornalista, apresentadora de televisão… Tudo impele os homens a desconfiar delas, mas também a utilizá-las para (re)encontrar uma existência e uma compostura sociais. Estranhas alianças são seladas assim, como em A bruma assassina ou em Príncipe das sombras: tudo ótimo, desde que esse homem e essa mulher, irresistivelmente atraídos um pelo outro, mas por ora ocupados salvando sua pele, não se “façam perguntas”… Encontros, ao mesmo tempo sexuais, burlescos e aterrorizantes (Halloween, Alguém me vigia, Christine, o carro assassino, O homem das estrelas, Memórias de um homem invisível…) se impõem nesse contexto de litígio e guerra em excesso e tornam-se, para Carpenter, a ocasião para desdobrar seu “estilo ‘composto’ [que] é mais intimista”. Conversa à noite, calma e risonha, enquanto, no limiar da casa, os marinheiros de outrora erram com sua foice: café preto da manhã, corpos radiantes e simplesmente expostos, apesar das reminiscências de territórios já percorridos, talvez em sonho, talvez não, e onde o amor não tem mais razão de ser; xaveco desavergonhado em um bar, provocação direta e engraçadíssima, mão sobre a coxa, enquanto um psicótico assombra os canteiros ao redor; balanço divertido, impudico, dos defeitos aceitáveis em um homem ou em uma mulher após um breve abraço circunstancial no banheiro de um clube sofisticado, cuja intensidade não permitirá — muito pelo contrário — que os jovens amantes se assegurem da existência de seus corpos. Quanto mais íntimo é o estilo, menos os acontecimentos, as pessoas e os elementos parecem adquirir consistência. Tudo conspira para prejudicar. Frontalidade. Nada jamais assegura que os espaços do encontro protegerão por muito tempo a espécie.
Nas fronteiras do espírito
Portanto, é preciso continuar, buscar outras relações, talvez menos “pessoais”, talvez mais áridas, mas certamente não menos belas. Tudo se passa como se o tempo privilegiado da despreocupação, essa infância do acontecimento, só pudesse compreender-se, isto é, prolongar-se, do ponto da fuga e da luta até a morte pela vida. Jeff Bridges, o extraterrestre de O homem das estrelas, está 100.000 anos a nossa frente: quando ele tem energia (mas o amor tem sua parte nisso), ele sabe melhor que qualquer um como fazer. Onde “Napoleon” (Assalto), “Nada” (Eles vivem) e “Plissken” (Fuga) ainda procuram balizas que delimitarão o campo de sua intervenção (e isso é, a cada vez, a história do filme), Bridges se contenta em estudar com precisão um mapa dos Estados Unidos. Suas chances de sobrevivência dependem menos de seu corpo ou de seus estados de “alma” que da relação concreta, exterior, entre o espaço (a ser percorrido) e o tempo (que lhe resta para percorrer o espaço). Sem essa fascinação pelo inimigo que por pouco não faz a heroína de Halloween perder-se e precipita o fim de Arnie (Christine), sem essa vontade bastante primária, que tornaria ainda mais lenta sua marcha, de brigar com o primeiro adversário que aparece (Eles vivem, Fuga, Os aventureiros), o extraterrestre rapidamente compreendeu que a geografia de nosso planeta só se desvela realmente no modo impessoal do corpo a mais, dificilmente nomeado, tão contingente quanto um monte de folhas que voam sob as balas de um fuzil sem origem. Enquanto Nada, Plissken e Burton ainda lutam para fazer seu nome, aqui e agora, o extraterrestre se apossa do mapa genético de um belo desconhecido e, não sem dificuldades, acomoda-se a um invólucro físico sem qualidades, puro veículo, para responder ao apelo dos seus. Impassível. Capenter propõe aqui, com sua modéstia e peremptoriedade habituais, uma das figuras mais justas e mais surpreendentes do que poderia ser um dia a singularidade de um homem às voltas com a inquietude que o põe em movimento: onde a diferença entre um corpo e seu pensamento, entre o espaço e a espécie, seria inteiramente subordinada à vida que o anima, e não mais à morte social, espetacular, que estrutura de ponta a ponta a ideia que ele tem de seu corpo. Nesse sentido, O homem das estrelas é também a história de uma descoberta: para viver, um ser precisa menos de um “fim” assinalável — uma vez que se trata sempre, e não importa quais sejam as civilizações, de provar que se pertence à espécie — que de um “meio”, um medium, um corpo cuja propriedade é lembrar, precisamente, que ele não é o próprio de ninguém (e sabe-se que isso não impede de modo algum, muito pelo contrário, que se entre em relação com outrem). Somente o defunto Comandante Powell, outrora no comando da Dark Star, e doravante mantido em sobrevida cerebral por uma tripulação extravagante que o congelou por decisão própria em uma espécie de ânus criogênico, tem noção dessa estranha “medialidade”... Corpo de além-túmulo, ele se tornou a memória e o Espírito de um navio naufragando. Ao percurso inútil da nave, sem remorso nem projetos, responde um pensamento sem fim, mas específico — como em sobrevoo, mas destacado da crença em um corpo especial. A voz que o exprime é inesquecível: menos brusca, mecânica, que a do extraterrestre e desacelerada pelo frio, ela parece abaixo do nível mínimo de humanidade. Aqui, ela é prima dos murmúrios extraterrestres que recobrem suavemente as paisagens na abertura de Cidade dos amaldiçoados ou do silêncio impressionante que precede a aterrissagem dos caçadores de Vampiros de John Carpenter. Ela plana. É um sobrevoo impessoal, uma música surda e melancólica, de uma beleza assustadora, da qual Carpenter só dará uma imagem mais justa ao filmar as paisagens “californianas” de A bruma assassina: mar calmo, costas selvagens batidas pelo vento, magros postes sobre um fundo cinza-azulado, suspense metálico — uma ideia do que, muito antes da separação do corpo e da alma, dos meios e dos fins, dos humanos e dos deuses, a matéria dizia.
Uma física do afrontamento
Já escuto os gritos: mas o cinema é o corpo! Mas é claro, absolutamente. É este corpo aí, muito antigo e, no entanto, ainda amplamente inédito. Jean-Claude Biette lembra frequentemente que o que retemos dos grandes filmes é sempre a luz. A luz de A bruma assassina, a luz de O homem das estrelas são indissociáveis desses corpos improváveis, extraterrestres, que são dados a ver. Matéria sem matéria, ondas projetadas sobre móveis em repouso ou em movimento, a luz dos filmes de Carpenter é memorável, porque ela é o meio sem fim da frontalidade: encontro instável, explosivo, mas essencial, de um signo e uma trajetória, de um sentimento e um território, “zona cinzenta” e relação de composições, ela é a própria “verdade” de seu cinema: “Descarte tudo o que é impossível e guarde o que sobra, mesmo que improvável, e terá a verdade”. (Conan Doyle, citado pela feroz e luminosa Kirstie McAlley em A cidade dos amaldiçoados).
Se fosse absolutamente necessário dar uma imagem da luz em Carpenter e de sua progressão frontal desde o reino da ficção, seria preciso evocar a neblina de A bruma assassina. Fonte luminescente de contornos distintos e, no entanto, sem limite, essa luz é ao mesmo tempo extremamente brilhante e infinitamente gélida. Ela é como que o duplo de uma luz mais trivial, a que emana dos corpos dos personagens, e que encontra seu reflexo na superfície do filme. “Tudo o que vemos ou acreditamos ver é apenas um sonho dentro de um sonho”: a epígrafe de Edgar Allan Poe vale para muitos outros filmes. A combustão luminosa operante em O homem das estrelas, Memórias de um homem invisível, A cidade dos amaldiçoados e sobretudo em Christine, o carro assassino (dominante vermelha e faróis cegantes — she’s so bright) beira a elegância incandescente, as épocas frias e sonhadoras dos mais belos filmes de Coppola. Os planos de conjunto “pascalianos” (o silêncio infinito), os planos fechados “cartesianos” (a descoberta — explosiva — do solipsismo) de Dark Star dão uma força de consistência real à “Fênix”, a chuva de asteróides que libertará a tripulação. Assim, a luz de Carpenter provém desse cintilar eterno, inexplicado, dessa “aura” sem falta nem origem com a qual o “corpo” em fuga do Homem invisível se ilumina por instantes como que à sua revelia.
Portanto, qual é o plano em que se agenciam e se encontram a matéria e a luz? Cada filme de Carpenter propõe uma resposta, mas Príncipe das sombras faz disso seu verdadeiro tema: uma espécie de teoria fascinante da força luminosa, isto é, da zona em que a impulsão primeira produz essa energia que funda, em certo sentido, o cinema. Na realidade, o grande mistério se formula de um modo bastante simples: por que a velocidade da luz é a maior possível? O que exatamente sabemos dela? Qual é a relação exata entre essa velocidade, a percepção dessa velocidade por nosso cérebro e o funcionamento, enquanto tal, de nosso cérebro? Não há um “momento” da física ou da astrofísica, não há uma “pré”-física de onde a luz, na oposição frontal aos princípios reais, decorreria? O filme propõe a noção de “táquions”, partículas dotadas da maior velocidade possível e que dariam, assim, acesso a um outro plano que o da realidade da luz — plano de que todos tivemos experiência, ainda que em nossos sonhos. Como compreender de outra forma essa instabilidade do “real”, como evocar a experiência banal, humana (basta ir ao cinema), do descentramento regular de nossas percepções em direção a um éter, a universos inverificáveis (Os aventureiros é também um grande filme sobre o assunto)? Príncipe das sombras põe, como indica seu título e, aliás, muito mais em sua mise en scène que em seu argumento, o princípio de uma duplicação permanente da realidade, que reenvia a flecha do tempo, a autossuficiência da Natureza e a oposição do Bem e do Mal à experiência muito comum e, por ora, perfeitamente indemonstrável e portanto perfeitamente cinematográfica, dos mundos e das épocas compossíveis, das intuições e das percepções sobrenaturais, dos enigmas, enfim, da amoralidade do princípio da vida. Sabemos o que acontece quando um extraterrestre se imiscui no DNA de um ser humano. Saberemos um dia, senão no cinema, o que acontece quando o Pai do Diabo torna-se subitamente perceptível? Evidentemente, o problema não é responder sim ou não. É dimensionar as relações totalmente explícitas que Carpenter estabelece entre um estado da matéria e um outro e, portanto, entre um suporte cinematográfico e um outro. Esse olhar subitamente inumano de uma mulher “eleita” para dar à luz seu Pai (Príncipe das sombras) é importante, porque ele está no cerne da questão dos corpos “mutantes”. Essa hipótese da luz “encurvada” e da “antigravitação molecular” (Eles vivem) remete diretamente à irradiação e ao desaparecimento — muito contemporâneo — de uma modalidade clássica do corpo (o do Homem invisível). Essa injunção a garantir, apesar de tudo, uma forma ao corpo humano (Os aventureiros) obriga que se pergunte o que Carpenter está fazendo ao filmar o mundo “outro”, passado-futuro, em vídeo (Príncipe das sombras). Ele o faz de uma maneira muito diferente da de um Chris Marker. E, distorcendo a frase de Michaux, não são os filmes de Marker que deveríamos mandar para o espaço, ou não somente, mas também os de Carpenter. Pois, se ele permanece preocupado em mostrar a instável estabilidade do homem (“você está ótimo quando não está mais mal”, diz o extraterrestre de O homem das estrelas), ele põe ao mesmo tempo a questão da utilização das imagens. A ameaça mortal de uma compreensão sobrenatural do homem (A bruma assassina: “Six must die”...), confrontada à boa vontade geral (O homem das estrelas: “I send you greetings”...), desemboca por ora na utilização muito maliciosa e, portanto, vital, dos novos suportes da imagem: em Fuga de Los Angeles, Snake Plissken nos mostra qual uso devastador se pode fazer dos hologramas e aproveita-se disso para lançar, meio irônico, meio humanista, um “Bem-vindo ao mundo dos humanos” que se dirige também a todos os starmen e starwomen do Universo. Pois uma coisa é certa: a vida veio de uma supernova e já passou da hora de ir lá ver mais de perto. No cinema.
O cinema, isto é, o cérebro, e mais exatamente uma das conexões do cérebro técnico e tecnológico que se instala há um século, terá algum sentido quando chegar aos olhos e às orelhas divertidas dos supernovanos?... Pouco importa: a resposta à questão do cinema frontal de Carpenter estava na pergunta.
Jean-François Lyotard, Le Post-moderne expliqué aux enfants [O pós-moderno explicado às crianças], ed. Galilée, 1986, pp. 133-134: “Um novo cenário se instala lentamente. Sumariamente: o cosmos é o resultado de uma explosão; os escombros ainda se dispersam sob o impulso inaugural; os astros, queimando, transmutam os elementos; sua vida é contada; a do sol também; a chance de a síntese das primeiras algas ocorrer na água na Terra era ínfima; o Humano é ainda menos provável; seu córtex é a organização material mais complexa de que se tem conhecimento, as máquinas que ele engendra são sua extensão; a rede que elas formarão será como um segundo córtex, mais complexo; ela terá de resolver os problemas de evacuação da humanidade alhures antes da morte do sol; a triagem entre os que poderão partir e os que são destinados à implosão começou pelo critério do ‘subdesenvolvimento’.
Investida final sobre o narcisismo da humanidade: ela está a serviço da complexificação. Esse cenário é erigido no inconsciente dos jovens desde agora. No teu”.
*NdT: Em francês, o termo enceinte tem tanto o sentido de clausura quanto o sentido de grávida.
De la frontalité foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma n° 6 e 7, verão e outono de 1998. Tradução: Rafael Zambonelli.
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