O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

O mármore sangrou




Sobre Uma Visita ao Louvre de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet

Por Jean-Charles Fitoussi

"A vida! A vida! Eu tinha apenas essa palavra na boca. Eu quero queimar o Louvre, pobre coitado! É preciso ir ao Louvre pela natureza e voltar à natureza pelo Louvre… Mas Zola me agarrou muito bem em A Obra[1], talvez você não se lembre disso, quando ele berra : 'Ah! a vida! a vida! senti-la e restituí-la em sua realidade, amá-la por ela, ver nela a única beleza verdadeira, eterna e mutável….'"

Joaquim Gasquet, Cézanne.

Se erroneamente você decide que quer, de acordo com a expressão corrente, "contar" o filme, ele não terá ares de nada: os quadros do Louvre em plano fixo, com uma voz em off que os comenta, enquadrados por duas panorâmicas e pontuados por um vista do Sena desde o museu. Nós não teríamos dito nada do filme. Ao cliente que, irreverente, teria o bom humor de retrucar "vá diretamente ao Louvre, com um guia", nós precisaríamos então que o guia, aqui, é Cézanne, pelo menos do modo que nos quis restituir Joaquim Gasquet. Mas nós estaríamos entrando numa rua sem saída se nos deixássemos levar por esse caminho. Esse filme, como todos os grandes filmes, não (se) conta: ele faz ver, ele nos dá o que ver, ele faz ouvir, ele alimenta os olhos, as orelhas, o espírito, o coração - de uma só vez, e é tudo um. Ou bem, se você não quer desistir, escute, sim, esse filme conta alguma coisa. Ele conta o prazer que existe em ver. E, portanto, o prazer que existe em viver - desde que nós saibamos ver. Sim, nada menos do que a alegria de estar no mundo, essa alegria de viver serve de título a um romance de Zola mas que transborda e transbordará sempre, nessa simplicidade mesma, irredutível, misteriosa, impensável, tudo o que um escritor jamais será capaz de dizer sobre ela - alegria de viver, alegria de estar neste mundo, alegria de simplesmente ser, imerso, submerso de mundo, satisfação pelo simples fato da realidade existir, tal qual ela é, isto é, rica de mil matérias, de mil cores, mil nuances. Tudo isso unicamente com os quadros (e uma escultura) do Louvre filmados em planos fixos, com a voz off que os comenta e em apenas quarenta e sete minutos. Mas ainda é preciso abrir amplamente os ouvidos e os olhos, é a isso que se dedica a arte cinematográfica dos Straub. Como em todos os seus filmes, mas de maneira ainda mais explícita aqui, eles trabalham aumentando, dilatando, afinando a percepção de seus espectadores, apostando no fato de que o bem estar (no mundo, na Cité[2]) passa pelo ver bem, pelo entender bem, em síntese pelo sentir bem (o mundo, a Cité) : se nós o fazemos mal, é porque percebemos mal - assim, parodiando um título de Beckett : mal visto, mal feito. Aqui, estimulados pela voz de Cézanne transmitida por Gasquet e dita por Julie Koltai, nossos olhos discernem a que ponto, não, Ingres "não tem sangue", que "por ter querido tanto pintar a virgem ideal, ele não pintou mais corpo algum", que David, "mau pintor", "matou a pintura", mas que Tintoretto é o pintor, que Delacroix "ainda tem a paleta mais bonita da França, e [que] ninguém, sob o nosso céu (...) teve mais do que ele o charme e o patético ao mesmo tempo, a vibração da cor", que Courbet trouxe "o odor das folhas molhadas, as paredes musgosas da floresta, (...) o murmúrio das chuvas, a sombra dos troncos, o caminho do sol sob as árvores, o mar; e a neve, [que] ele pintou a neve como ninguém." Nossas orelhas entendem, e nossos olhos, então, veem: a escuta aprofundou a vista, a orelha dirigiu o olho. Paradoxalmente, a fixidez absoluta dos planos, que poderiam aparecer como a negação mesma do cinematógrafo – não há o mínimo evento cinético nesses planos, nem movimento nem variação de luz - essa fixidez trazida a seu ponto culminante termina por se animar. Pois, por um lado, nossos olhos percorrem a tela, viajam no quadro no ecrã; por outro, e principalmente, quando o quadro vibra, ventaneia, quando "os volumes torcem e se acomodam", quando "as asas batem, os seios se inflam", quando "o sangue pulsa, circula, canta dentro das pernas", em resumo quando a obra vive, o plano cinematográfico herda essa vida, se anima pelo movimento próprio da obra. Realizando a vontade do pintor, formulada em seu Cézanne de 1989, os Straub conseguem novamente aqui não ser nada mais que uma "placa sensível", um "receptáculo de sensações", o absoluto da transparência, unindo-se ao que filmam, e que eles revelam na sua verdade nua. Os quadros se apresentam na nossa frente como no juízo final, e aqueles que, vitoriosos, "encantam todos os sentidos", esses se desprendem por eles mesmos de todos aqueles em que o artista, preocupado demais com o seu eu, deixou infiltrar apenas a sua pequenez. Nós vemos: a evidência da beleza, concebida como sensação da verdade, plenitude da sensação. Um estado de clarividência, dizia ainda Cézanne: estamos nele.




Entrando na sala de cinema, é no olho do pintor que nós entramos - e, quem sabe, em seu espírito. Nós vemos com ele, nós sentimentos como ele: por qual curioso processo de hibridização um texto escrito por Gasquet se lembrando o mais fielmente que ele pode das palavras de Cézanne ("eu não inventarei nada, – além da ordem em que as apresento" escreveu ele em seu prefácio), pronunciado pela voz de Julie Koltai no timbre envolvente trabalhado pelo ritmo dos Straub, consegue ressuscitar uma visão, um pensamento? É esse o mistério do filme, e um de seus milagres. Para bem ver no museu, é preciso permanecer muito tempo de frente à obra, e, principalmente, pegar um lápis e desenhar (meu professor de artes plásticas no colégio, o artista plástico Jean-Pierre Le Brun, nos dizia "desenhar é gravar na sua cabeça.") No entanto, sem essa mediação as grandes obras aqui filmadas se gravam na nossa cabeça – e nós saímos da sala escura totalmente inebriados por elas: pronto, de agora em diante elas fazem parte de nós. Outro milagre. Quanto aos outros, os quadros que são apenas lugar-comum, idealidades, espírito de sistema, literatura (outra palavra para porcaria, dizia Artaud) ou ainda aqueles que, traídos pelas cores ruins vendidas pelos maus farmacêuticos, se desvanecem ("não sobrará, um dia, mais nada… Se você tiver visto o mar verde, o céu verde."), eis que nos livramos deles. O que falta a esses pífios quadros de "falsos pintores"? Eles são pobres de real. O eu passa neles antes do mundo. Fora, então, aqueles que, como ouvimos no Cézanne de 1989, "não veem essa árvore, o seu rosto, esse cachorro, mas a árvore, o rosto e o cachorro." Fora Ingres, e fora David, que no seu Assassinato de Marat "pensava naquilo que diriam do pintor e não naquilo que pensaríamos de Marat." Esse filme é um apocalipse: cabeças rolam. E se a Vitória de Samothrace, sendo feita toda de mármore, decapitada, sangrara, esses pintores ruins viveram sem sangue: mortos-vivos. Mas glória aos Veronese, aos Giorgione, aos Delacroix, aos Courbet, cujas telas recuperam a suavidade, a felicidade do que existe para sempre, aqueles que fazem chegar "a imensidão, a torrente do mundo em um pequeno polegar de matéria", aqueles que, no fundo – e aqui o Cézanne de Gasquet não está longe do Nietzsche do Caso Wagner – nos fazem melhores: "Essas rosas pálidas, essas almofadas grosseiras, esta babouche, toda esta limpidez, eu não sei, entra nos seus olhos como um copo de vinho na garganta, e ficamos imediatamente todos embriagados. Nós não sabemos como, mas nós nos sentimos mais leves. Essas nuances aliviam e purificam. Se eu tivesse cometido uma má ação, parece-me que eu iria diante deles para me endireitar." Percebemos, enfim, todo o amor do real, toda a alegria de viver com os quais esses planos foram preenchidos? Nós nunca sublinharemos o suficiente o quanto a famosa "resistência" straubiana se fundamenta em uma aprovação. A potência de seu "Não" não é nada mais que a consequência direta da imensidão de seu "Sim". Aos antípodas de todo romantismo, é em vão que se procurará, em suas recusas, qualquer repugnância pela vida, ou outra inclinação ao spleen. É sempre, tanto para eles quanto para Cézanne, como para o casal reconciliado de Von Heute auf Morgen (Do dia ao amanhã[3]), o aqui que é preferível a qualquer outro lugar. Melhor, é esse temperamento embotado levado em direção às regiões nubladas e embaçadas do irreal que se trata sempre de combater: apenas o real conta, apenas as coisas que existem importam. E se é preciso "queimar o Louvre", é porque ele fracassa em glorificar a existência, é porque ele arruína mais do que revela os tesouros de vida que ele contém. O não se endereça aos negadores do real.




Ainda mais uma palavra. Uma hipótese. Esta Visita ao Louvre em torno de 1900 não assina a certidão de nascimento do… cinematógrafo? Cézanne morre; dez anos depois, Griffith filma O Nascimento de uma Nação. Veja, diz Cézanne, como a cabeça perdida da Vitória de Samothrace já está totalmente contida no restante do corpo: nós vemos uma parte, nós podemos imaginar o todo. Nascimento do enquadramento, nascimento do fora-de-campo: "Eu não preciso ver a cabeça para imaginar o olhar". Melhor, esta estátua "é todo um povo, um momento heroico na vida de um povo", seu sangue "está em movimento, ele é o movimento de toda mulher, de toda estátua, de toda a Grécia": desenquadrando a estátua, os Straub, sobre o fundo de uma parede de pedras, nos fazem imaginar esse povo por trás de Vitória, nos fazem vê-lo inclusive na sua ausência – nascimento do cinema dito moderno, de um fora-de-campo nas profundezas do próprio campo. Enfim essa fonte que Ingres não soube pintar, essa fonte que "uma vez que ela é a fonte deveria sair da água, da rocha, das folhas" e que nos é apresentada pela má pintura no começo do filme, essa fonte tal como Cézanne a deseja, onde, dessa vez, os elementos se interpenetram, onde a rocha trocará sua umidade pedregosa com o mármore da carne molhada, essa fonte... não é o plano último que fecha a obra, panorâmica no vale de Buti? – o que faria desta Visita ao Louvre não apenas o último componente de um tríptico inaugurado por Operários, Camponeses (tríptico da transfiguração introduzido e concluído pela cantata de Bach Mit Fried und Freud ich fahr dahin: "Uma luz incompreensível preenche o círculo inteiro das terras." ), mas o manifesto do Cinematógrafo Lumière.

[1] NdT: Romance de Émile Zola publicado em 1886 (em francês L'Oeuvre).
[2] NdT: Maneira que os franceses se referem ao centro antigo de algumas cidades; também as cidades antigas administradas pelas próprias pessoas que moravam ali, os cidadãos
[3] NdT: Ópera de Arnold Schoenberg sem tradução para o português.

Le marbre a saigné foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n° 26, abril/maio/junho de 2004. Tradução: Roberta Pedrosa.

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