O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Quando o desejo descarrila…




Por Frédéric Majour

Como é possível? Como eu pude esquecer um plano desses, um plano sublime, situado no meio de A General, o mais bonito dos filmes de Buster Keaton, no momento em que o herói, perdido em território inimigo, se encontra escondido embaixo da mesa dos oficiais nortistas e que, através de um furo na toalha de mesa, nascido do contato imprudente de um charuto, ele descobre, estupefato, o rosto de sua amada? Como eu pude esquecer uma vez que ele constitui o próprio coração da obra, o ponto para o qual converge toda a primeira parte? Essa questão me consome desde que eu revi o filme – a primeira vez, já fazia uns quinze anos –, pelo quão inconcebível me parece que a minha memória não tenha podido reter o que justifica ao mesmo tempo o movimento da obra e a simetria de sua construção, essa inacreditável ida e vinda ferroviária onde se inserem mil peripécias (e inúmeras gags). A tal ponto que eu cheguei à única conclusão possível: esse plano, bem, eu nunca tinha visto. Não que ele tivesse me passado despercebido na época, carregado pelo ritmo frenético da mise en scène, mas porque ele havia simplesmente desaparecido da primeira versão que eu vi. As provas? Eu apresentarei duas. A primeira, infalível, é que existe uma cópia na qual a cena não aparece em sua totalidade (e, de resto, foi a partir desta que L'Avant-Scène Cinéma estabeleceu sua montagem do filme): se pode ver unicamente Buster encurralado entre as pernas dos militares, escutando esses últimos refinarem sua estratégia, depois esperando pacientemente que o caminho fique livre para escapar. A segunda, talvez menos convincente mas infinitamente mais sedutora, se encontra em um texto de Louise Brooks: "O rosto mais bonito de um homem que eu conheci", escreveu ela, "eu sempre pensei desde a infância, era o de Buster Keaton, e foi em 1962 apenas que eu tive a ocasião de lhe dizer. Nós estávamos em seu apartamento no hotel Sheraton em Rochester, onde ele filmava na época um filme publicitário para a Kodak. Eu lhe falei do plano em A General em que ele se esconde embaixo de uma mesa. 'Você estava tão terrivelmente bonito, Buster, sob essa iluminação trágica, em uma tal ruptura com sua personagem cômica, que no seu lugar eu teria cortado esse plano, eu o teria retirado do filme'"[1]. Se Louise Brooks se atenta apenas ao físico de Buster Keaton, esse famoso rosto marmóreo – "lincolniano" dizia James Agee – cuja beleza grave tanto fascinou as mulheres como também os homens, aliás, e não menciona a imagem do buraco na toalha, é que, presumivelmente, ela também não a havia jamais visto. Mas sobretudo ela aponta para o que finalmente permanece o estranho paradoxo do filme e, de maneira mais geral, de toda a obra keatoniana: o casamento insólito da beleza e do burlesco. Aquilo que diz em suma Louise Brooks é que beleza demais (a da personagem mas também a da obra) pode prejudicar a eficácia do burlesco. Foi este, aliás, o dilema colocado à maioria dos grandes comediantes uma vez que eles passaram não apenas do mudo ao falado, mas sobretudo do curta ao longa-metragem. Eu continuo persuadido de que as "duas bobinas" representam a duração ideal do cinema burlesco – como prova, eu nunca ri tanto quando nos pequenos filmes de Carlitos ou de O Gordo e o Magro – e que, nos longas-metragens, a diluição frequente de gags, tanto no tempo quanto no espaço, confere à obra uma dimensão tão onírica que o riso se encontra frequentemente suspenso (nós podemos assim conceber perfeitamente A General como um longo sonho de um pobre maquinista, sobre quem recai, erroneamente, a suspeita de ser um covarde, e imaginando-se, por consequência, realizando os atos mais heroicos). Daí a seguinte hipótese: se a imagem do herói, descobrindo num medalhão o rosto daquela que ele ama, não aparece nas cópias antigas de A General, é porque essa imagem deveria, para alguns, romper muito violentamente com a dinâmica do filme, em outras palavras, com sua força cômica, movimento já ameaçado pelos closes "trágicos" de Buster encolhido embaixo da mesa, onde pela primeira (e única) vez nós o vemos descabelado e com o rosto cansado, tal como um palhaço demaquilado, um excesso de realismo que só poderia alterar a comicidade da situação. Resta, no entanto, que é essa discordância entre o trágico do personagem e o cômico da sua posição, no mínimo desconfortável, que constitui toda a força da cena e por isso mesmo sua inigualável beleza. O que caracteriza, assim, o gênio de Keaton é que nele a poética da gag confina sempre à pura poesia. Não a poesia maliciosa de Chaplin, nem aquela, lunar, de um Langdon, mas uma poesia que poderia ser qualificada como "lírica", na qual se misturam, como nas mais belas odes gregas, a celebração do feito (as proezas do herói), nobreza dos sentimentos (o amor como motivação) e rigor da composição (a geometria perfeita do conjunto). E é justamente nos seus longas-metragens que uma tal poesia parece melhor se exprimir – assim, no filme que nós discutimos, esse plano maravilhoso em que Buster, sentado na biela da sua locomotiva, depois de todos, exército e noiva, terem-no rejeitado, se encontra conduzido pelo movimento das rodas, subindo e descendo como em um carrossel para crianças (imagem, dessa vez langdoniana, da imaturidade inicial do personagem que o filme se encarregará de virilizar posteriormente) – sob o risco de algumas vezes ter que renunciar a algumas cenas quando a força poética que emana delas ameaça a homogeneidade do filme (assim, n'O Navegante, Keaton teve que cortar a contragosto sua melhor gag que o mostrava vestindo um escafandro, com uma estrela do mar agarrada ao seu peito, organizando embaixo d'água a circulação dos peixes).




Que dizer, então, que essa imagem do olho é o genuíno "ponto cego" do filme? Sua ausência em algumas cópias seria simplesmente pela sua incongruência? Não haveria outra coisa que explicasse ao mesmo tempo que, numa época, tenham querido se livrar dela e que, tendo reaparecido hoje, ela nos desconcerte a esse ponto? De fato, é claro que é principalmente a carga erótica produzida por uma tal imagem que causa problemas num gênero – o burlesco – em que o sexo é, como se diz, sempre recalcado (como a morte, aliás, o que explicaria o incômodo que sentimos igualmente, na batalha final, diante de todos esses soldados caindo um depois do outro), ao passo que, em Keaton, ele é, ao contrário, bem presente, mas frequentemente dissimulado sob as feições sutis (e sem nenhuma inocência) do amor cavalheiresco. Pois o que se vê nesse plano? Um olho cercado de preto (as bordas queimadas do buraco) fitando clandestinamente seu objeto de desejo. Fitando-o com uma intensidade tão febril (a personagem está encharcada como uma sopa), tão ardente, que ele parece ser a causa, mais que o charuto, do buraco pelo qual o homem pode enfim observar, em completa impunidade, aquela que ele cobiça já há muito tempo. Além da simples pulsão escópica, é, portanto, uma outra pulsão que emerge desse olho de ciclope, colocado no centro da imagem e cujas figuras ao redor (as manchas na toalha de mesa) sugerem o traçado de um misteriosa cartografia, a do desejo, certamente: o desejo do herói, em primeiro lugar, tão forte, que ele deve se morder para controlá-lo; o desejo do espectador, em seguida, mas sobre o qual não nos demoraremos, já que a analogia entre desejo do espectador e voyeurismo se tornou hoje a “tarte à la crème[2]” (se podemos dizê-lo a respeito de um filme burlesco) do discurso crítico; o desejo da narrativa, enfim, aquele que alimenta toda a dinâmica do filme, pelo menos na sua primeira metade, e isso até o ápice que representa, para o herói, a "noite de amor” passada com a sua amada. Pois, no plano narrativo, é certamente o ponto alto do filme. Diferente de outras obras típicas do burlesco, como por exemplo Sete Oportunidades, fundadas na progressão da narrativa até a apoteose final, A General é, literalmente, dobrada em dois. A apoteose se situa no meio: a primeira parte – uma vez lançada a "locomotiva" da narrativa – segue o movimento raivoso de uma pulsão que nada pode parar. Enredado na estrada (de ferro) do desejo, Buster supera todos os obstáculos. Ele vai e vem, corre em todos os sentidos, como que dominado por uma excitação incontrolável. Pela interrupção que ele produz na dinâmica do filme, o plano do olho vem então marcar o fim do primeiro movimento, com a tensão atingindo aqui seu paroxismo, um tipo de clímax que não tem nada a ver com o momento de bravura que é representado, no finale, pela grande batalha no rio Rock. Isso equivale a dizer que o plano prefigura também o relaxamento da pulsão, o que nos é revelado, em seguida, pela sequência da floresta onde o homem pode finalmente abraçar a mulher que ele acabou de libertar. A passagem que mostra os dois amantes lutando contra uma armadilha de caçador evoca quase sem disfarces o ato sexual. Mas ela antecipa também o segundo movimento: o retorno à norma. Se a primeira parte celebrava em Buster seu espírito individualista, seu gosto pela liberdade, à imagem do artista inteiramente dedicado a sua obra, sob o risco de por vezes se retirar do mundo (ele não vê a guerra ao redor dele), a segunda é uma verdadeira invocação da ordem, uma marcha triunfal para a reintegração. Buster é capturado pelas convenções. Por um atalho aterrorizante, a "General" torna-se o teatro das piores servidões; a rotina da vida a dois, quando se é menos atento ao outro (Buster borrifa duas vezes a mulher sem perceber), quando se discute por "ninharias" e, por vezes, o desejo de beijar o outro se confunde com o de estrangulá-lo. O dever do heroísmo, quando alguém deve enfrentar todos os perigos, mesmo os mais absurdos (poucos filmes souberam evocar, como esse, em poucos planos todo o absurdo da guerra), não apenas para merecer o amor do outro, mas também para existir aos olhos dos outros; as amarras do conformismo, quando é preciso ceder às regras da comunidade para não se sentir excluído: miséria da vida bem alinhada. Se Keaton transformou a narrativa nortista (The Great Locomotive Chase) em que o filme se inspira numa obra "sulista", não é tanto para aderir à causa sulista que para fazer "secessão", ou seja, para marcar sua ruptura com um sistema, aquele alienante da normalização, sabendo além disso que tal sistema sempre terá a última palavra. No final do filme, Buster entrou definitivamente na linha: ele veste um uniforme, a cenoura (social) que a mulher brandia na sua sua frente desde o início e à qual ele acabou por se agarrar. Agora é um homem, um verdadeiro, em outras palavras, um homem como os outros, um homem entre os outros, anônimo e portanto perfeitamente alinhado. Mas não é também a imagem do artista triturado pelo sistema? Não podemos deixar de ver esse retorno a uma vida formatada como uma premonição do próprio destino de Keaton (suas decepções artísticas e seus infortúnios conjugais) que, depois de explorar a máquina hollywoodiana, esbanjando o dinheiro dos produtores, não hesitando em precipitar, pela "beleza do gesto", uma verdadeira locomotiva do alto de uma ponte, foi obrigado, ele também, a exemplo de um Stroheim, a entrar na linha. É por isso que não é possível interpretar como a imagem mesma da felicidade esse último plano onde se vê o herói saudando com um gesto repetido e mecânico os soldados que passam na sua frente enquanto ele beija a sua prometida. Isso, um happy end? Eu desconheço gag mais desesperada!

[1] Louise Brooks, "Buster Keaton", In. Double Exposure, Roddy McDowall, 1966.
[2] NdT: ”tarte à la crème” é literalmente uma torta de creme (usada em diversas gags do cinema burlesco) e também uma expressão corrente que significa que algo é um lugar-comum.

Quand le désir déraille... foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n° 29, janeiro/fevereiro/março de 2005. Tradução: Roberta Pedrosa.

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