O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

O rabo preso do camaleão




Sobre Prenda-me se for capaz de Steven Spielberg

Por Christine Martin

Mudanças à vista, oportunidades de transformação introduzidas à toda velocidade, reinvenção instantânea de si mesmo em benefício de um avatar mais apto a se fundir no novo terreno encontrado: depois de ter trabalhado a figura do alien, Spielberg propõe com Prenda-me se for capaz um delicioso trabalho sobre o falso nome. Se é justo que o filme marque, em primeiro lugar, os espíritos pela impressão incontestável da história verdadeira e dela extrai, se for preciso, uma forma de credibilidade, é também por isso que ele decepciona - e tanto melhor. Liberando uma forma de virtuosidade roteirística exigida pelo tema, preferindo isso à fecundas elipses, Spielberg parece mais ter cedido às grandes vertigens oferecidas tanto ao ator quanto ao realizador. Aqui estão os dois se oferecendo, no seio de um mesmo filme, variações jubilatórias sobre praticamente todas as profissões e as instituições que contam no país: escola, aviação civil, justiça, medicina, banco, jet set inclusive - a família e a polícia, voltaremos a elas mais tarde. Um brincando de filmá-las como cenas de gênero, o outro brincando de se fundir. Brincar é a palavra, "brincar de" é ainda preferível. Por uma parte muito sedutora, o filme entra em ressonância com essas tardes de quarta em que as crianças empregam uma estranha concordância de tempo ("é como se eu fosse o piloto") com o fim de dar toda a imanência necessária ao exercício dos seus irredutíveis e absolutos poderes. Assim Spielberg faz as cenas desfilarem como um catálogo de filmes por fazer, assim DiCaprio se desdobra como num terreno sem limites. Não será o animado prelúdio artístico que irá me desmentir: o grafismo impulsivo dos créditos iniciais, ou a música de gato de um John Williams que teria por um tempo renunciado à cobertura açucarada dos violinos por obcecados riffs de metais... Estamos abrindo a caixa de um jogo, o jogo do camaleão.




Que jogo se joga quando se é um camaleão? De se fundir com mais de um cenário, de se fazer passar pelos outros até que os outros já não te distinguem mais e se tornam eventualmente suas presas. O princípio do mimetismo supõe um excelente conhecimento do terreno sobre o qual se movimenta. Essa admirável habilidade de adaptação social não tem por vocação expor o sujeito, ao contrário. Multiplicando as aparições sob todos os tipos de camuflagens, sobre-existindo de mil formas, trata-se de não existir mais. O que não se faria para evitar de chamar a atenção? Aqui, o patético impulso em se fusionar com seu entorno já no primeiro contato, o furor de integração em suma, assume, paradoxalmente, os aspectos da pequena, ou melhor da grande delinquência. E é nesse ponto que o personagem de Frank Abagnale Junior encontra os contornos de um outro camaleão célebre, seu irmão mais velho de um bom meio-século: Monsieur Verdoux. A semelhança é impressionante: ao rever Charles Chaplin desembarcar com o uniforme de comandante de bordo na casa da inefável megera interpretada por Martha Rye, uma genealogia natural se estabelece entre esses dois grandes trapaceiros. Tudo os afilia. Vejam a vivacidade deles nos momentos em que precisam ser duas caras: Verdoux é acolhido no salão de uma viúva rica, futura vítima; Na sua pressa em seduzi-la, ele abraçará, em um mesmo ímpeto e com um único movimento de câmera, a arrumadeira, e depois a amiga em visita, antes de mergulhar nos braços da boa senhora e desculpa-lá pela grosseria do desprezo através do transbordamento da paixão. Abagnale é surpreendido em seu quarto de hotel de falsário pelo policial Hanratty, e escapa usando a genial estratégia do regador regado: para um policial, um policial e meio. Vejam seus interesses em comum por uniformes nesta sociedade de aparências. Se Frank Abagnale Junior, em sua nova escola, não tem mais necessidade de usar uniforme, como lembra sua mãe com um leve toque velado de decepção, de quem engoliu mal sua recente queda social, no entanto este uniforme deslocado vai rapidamente o permitir de investir em outra função; o tempo de virar as costas para uma classe barulhenta e de se reinventar em um jovem e proselitista professor de francês. Quando os camaleões não usam mais os uniformes que servem de suporte para seus golpes, que lhes dão estrutura e elegância, seu aspecto deslumbrante aumenta ainda mais para suavizar as asperezas do crime: o impecável figurino laranja de DiCaprio, emprestando de modo imperceptível a elegância do submundo encarnado por Ray Liotta em Os Bons companheiros. Com o cravo na lapela, Chaplin infringe aos seus contemporâneos o choque da metamorfose, abandonando os trapos do vagabundo pela pelica do rico.




Vejam seus estilos: tão “super-adaptado socialmente” (escreve André Bazin) quanto Verdoux, Frank Abagnale Junior dá provas de uma labilidade sem paralelo. É o fim do filme: com as mãos nos bolsos, ele chega ao FBI, mede o espaço, localiza os antigos perseguidores que deve evitar, e em seguida possivelmente seduzir, nos termos desta troca infernal proposta por seu perseguidor e mentor, em uma mise en scène fluída de táticas. Verdoux leva ao máximo a velocidade de ação emprestada do animal. Essa lambida tão rápida que o olho humano não é capaz de captar, Chaplin transpõe em fulminantes elipses cinematográficas: o ritual do assassinato conjugal se completa no tempo de abrir e fechar uma porta. Admirem enfim a abundância de mulheres e de recepcionistas que os cercam, revejam seus casamentos, fracassados in extremis porque o passado os lembra delas: em Verdoux sob a forma da indestrutível Martha Rye, e em Spielberg, sob a forma do rígido policial Tom Hanks. Nos dois casos o noivo vai deixar a garota sem ir, na transparência das cortinas esvoaçantes ou dos vidros quebrados, sobre o impulso do sopro da perda anunciada, da fixação impossível em outro lugar que não aquele de sua primeira “fecundação”.

Pois o camaleão tem o rabo preso. Está preso à sua família. Quanto mais sua identidade explode em facetas, mais seu ponto central é visível. Aqui, não nos surpreendemos, Spielberg reencontra sua essência, os corações privados de amor e que nenhuma conquista (fortuna ou outra) vai acalmar. Sequencialmente, falso tuberculoso, falso advogado, falso médico, falsificador de dinheiro, mas uma verdadeira criança tirada do colo de seus pais, Frank Abagnale Junior não tem nada além de um único objetivo: reconstruir a estrutura familiar, recompô-la visualmente ao ponto de corresponder exatamente a uma cena onde os pais possam estar todos os dois em um mesmo plano, capturados por um mesmo olhar, e se possível em contato um com o outro. É o pai, Christopher Walken dançando com a mãe, Nathalie Baye, uma repetição obsessiva da cena matriz de seu primeiro encontro; é o futuro sogro, Martin Sheen, lavando a louça quadril com quadril com a futura sogra, Nancy Lenehan. Motivo recorrente, motivação do personagem, motor de nossa emoção. Criado em uma forma de sobrevivência social que se aparenta à uma apneia – sobrevivência materializada por uma cena antológica em que o pai é nomeado num clube seleto através de uma modesta história sobre um rato que pedala tanto e tão bem no creme que ele “would eventually turn into butter”, Frank Abagnale Junior não é nada além do que uma criança presa, como muitas crianças são, a alguns cromos que revestem a mitologia familiar. Já vimos, certamente, Spielberg trabalhando sobre o tema desta particular nostalgia: do antigo E.T. ao mais jovem A.I. Mas revendo a criança clone suplicar à sua blue fairy, sua fada em vestido azul, para que ela o faça reencontrar sua mãe Monica, nos perguntamos se o cineasta não operava um certo deslocamento de um trauma nacional intitulado “Monicagate”. Em Prenda-me se for capaz, o tema da filiação e da cumplicidade perdida é exposto muito mais frontalmente, o vigor do golpe vem para cortar o sentimentalismo pela raiz. Se o assassinato em Monsieur Verdoux é motivado por uma necessidade incessante do personagem de voltar, ligado como por um elástico, a esta família que abriga uma deficiente, a essa cripple life, a esta existência aleijada que seria, ao mesmo tempo, a mais luminosa e a menos confessável, a mesma coisa vale para a vigarice em Prenda-me... Mas em sua dignidade de perdedor e em seu esguio uniforme de carteiro, Frank Abagnale Senior recusa-se a receber de seu filho os meios de reconquistar sua mulher. O Jovem homem precisa se resignar: “Minha criança, nós não nos casamos com nossos pais!” já cantava a fada Lilás de Pele de asno (mais uma famosa heroína-camaleoa). Com a mãe inacessível em sua nova felicidade, a irmã mais nova intocável por trás da vidraça e o pai morto, Frank Abagnale Junior acaba criando uma nova família com o pai-policial mais exigente que qualquer coisa: é a cena em que Tom Hanks abandona sua rigidez para esperar, mais em transe que um jovem apaixonado, que seu protegido retorne de uma fuga com objetivos incertos, uma última tentativa de metamorfose. O camaleão encontrou um terreno mais grudento que sua própria língua.




Em certos ambientes triunfa a espécie mais resistente. Percebendo os perigos que existem na permanência, os vigaristas tem mania de mudança. Em Monsieur Verdoux, as rodas do trem fazem a história avançar, e materializam elipses suficientes para nos fazer pensar que houve um assassinato, e que era o momento de se juntar (ou de alimentar através um outro futuro crime) à pequena família sofredora. Essa agitação ferroviária entretanto, não será suficiente para convencer o obstinado desejo de vingança da sociedade – à qual o próprio desencorajamento do personagem dá a mão de bom grado.

Aureolado com as asas da Pan Am, protegido por uma muralha de loiras, evoluindo com graça na era de ouro da aviação americana (e aqui Spielberg consegue reunir quase que todas as nostalgias), Abagnale deixa a realidade social mas reflete tão bem seu prestígio, que ele se torna o candidato ideal para uma recuperação de alto nível. Pois se em 1947, Verdoux terminava sendo executado, a América dos anos 2000 achou uma saída melhor para seus delinquentes geniais: se ajoelhando diante dos seus talentos, ela os reintegra para dar exemplo. Existe inicialmente, na leitura do epílogo, um truque de comédia (melhorada pelo carimbo da história real), seguido por uma abertura escandalosa sobre o cinismo – qualidade que raramente o triunfante Spielberg mostrou. A sociedade que suprimia Verdoux recicla Abagnale em um multimilionário (e o cinema também, por consequência). Visto esses dois filmes, temos a ideia de que a espécie do camaleão evoluiu pouco. Mas seu meio-ambiente, sim. Se Monsieur Verdoux atestava, segundo Jean Renoir, que sua época estava por se tornar “um mundo mais tenebroso”, como ele qualificaria o mundo de hoje, este mundo onde os camaleões poderiam desaparecer por não poderem se camuflar em um terreno que muda mais rápido que eles? Esse mundo onde, na deslumbrante vitória de sua reintegração, um Abagnale não tem mais o recurso do copo de rum do condenado nem a faísca da sobrevivência que acende no olho do velho lagarto? O tabuleiro do jogo se fechou.

Le fil à la patte du caméléon foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n°22, abril / maio / junho de 2003. Tradução: Evandro Scorsin.

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