O mais visual e o mais sensual dos cineastas é também aquele que nos introduz no mais íntimo dos seus personagens, porque ele é acima de tudo um apaixonado fiel da sua aparência e, através desta, da sua alma. O conhecimento em Renoir passa pelo amor e o amor pela epiderme do mundo. A agilidade, a mobilidade, o modelo vivo da sua realização é a sua preocupação em ornar, para seu prazer e nosso gozo, o vestido sem costuras da realidade.
Renoir francês - André Bazin

Hoje, Mods




Sobre Mods de Serge Bozon

Por Michel Delahaye

I

Mods é outra coisa.

II

Mods é um filme que não tem medo. Ele avança nu, sem efeitos, para nos deixar sem defesa.

Nada a esperar desse filme além do inesperado, enquanto se instala, de ato em ato, esta pulsação que não nos abandonará mais.

Mods não tem nada da máquina habitual de expressão. Tudo nele se combina seguindo a lei de um certo código que nos abre uma a uma a sequência das portas, nosso direito de passagem sendo assim regulado.

III

Chegamos no Alojamento. É normal. Estamos aí para isso. Como esses militares, convocados pela carta da Governanta Anna para ajudar seu irmão, subitamente imobilizado em uma dolência aparentemente inalterável.

No Alojamento, nós realizamos errâncias muito precisas, uma espécie de exploração de inter-vidas onde acontecem coisas que procedem certamente de uma regra, mas que não nos é dada de imediato. Não por isso estamos no escuro, pois as figuras do real existem em uma espécie de longo dia onde a noite não tem lugar. Mods, que é claro, opera somente no manifesto.

IV

O alojamento é composto de grupos (estudantes) que se cruzam sem que necessariamente se conheçam bem. Os irmãos militares passam por eles como eles passam por todos, educadamente identificando-se como sendo, quanto ao seu ofício, militares. A atitude deles, além disso, parece lógica, pois cada um, no Alojamento, reivindica aparentemente uma identidade clara.

No centro de tudo, a Governanta Anna, que se encarregou – descobrimos – de duas outras tarefas: de um lado se dedicar ao doentinho, de outro lado dar cursos de administração ao homem que deveria administrar mas que não sabe como fazê-lo. A governanta sabe. Ela tem altivez e doçura. Ela faz com que cada ser siga seu rumo.

Nas margens do Alojamento e de seu longo dia, há o terraço e sua noite. Ali, há uma mulher que cruza com os militares. Ela é professora, é seu ofício. Ela viveu, é seu estatuto, e ela tem sua beleza como se dela possuísse o diploma. Um e depois o outro se apaixonam por ela, mas, não importa o que eles digam, ela acaba sempre por tratá-los como caipiras.

Há também, um pouco em todos os lugares (vindos eles também para o doentinho), a mesma banda de errantes de sempre, que passam sem passar, mas ostentando sempre a mesma aparência (retirada de uma imagem dos anos sessenta), com esse perpétuo desânimo do qual eles fornecem pausadamente a rigorosa medida.




V

O que une realmente os lugares e seus blocos é o doentinho.

Ele está deitado porque está doente ou doente porque está deitado? Diríamos que ele está ali para estar ali, para fazer com que os outros estejam ali (e não estejam necessariamente onde eles deveriam estar), e talvez o alojamento esperasse desde sempre que ele viesse para assegurá-lo de seu ser.

O que ele tem, de fato? De verdade? Anemia? Antes anomia. Esse estado onde, privado de regras, privado ao mesmo tempo de espaço e de limite, privado de lastro, o ser sente como se flutuasse em uma bolha de vazio, inelutavelmente aspirado na direção de um polo ou de outro, da extrema violência ou do extremo hebetismo.

Ali, prostrado, ele fascina. Ele atrai tudo para ele. Sua passividade ativa os outros, sua imobilidade os move. Da desordem imóvel onde ele estagna parece surgir uma nova ordem.

Move-se. Busca-se. Encontram-se as cartas. Uma mulher lhes escreveu. É para rejeitá-lo, e sua última carta se compõe de um único e grande “NÃO”. Então, está tudo muito bem em ajudá-lo, mas a quem e ao quê responsabilizar?

Há o doutor. Seu ofício é saber. Ele tem um jaleco branco. Ele tem muita confiança e tranquiliza todo mundo decretando, finalmente, a medida radical: colocar em quarentena o alojamento. A partir desse momento, quietude e inquietude se fundem. Tudo repousa. Tudo fermenta.

VI

Seria tudo isso facilmente dedutível? Não totalmente, porque acontece de os momentos coreográficos (das canções americanas de meados dos anos sessenta) chegarem sempre no momento certo para nos fazer oscilar sobre outros planos além daquele em que estamos.

Essas pequenas coreografias não estão ali para centralizar (em toda grande obra o centro está em todo lugar), pois esses veículos da urgência se arranjam para surgir no canto de um espaço escolhido, com o único propósito de nos obrigar a uma exploração acelerada de todos os outros espaços do filme, aqueles de fora como aqueles de dentro. Elas parecem sair da história somente para melhor nos fazer reentrar nela, e, além disso, se desdobram para condensar e exorcizar a tensão afetiva e rítmica que, desde o início, faz palpitar o filme.

Mantendo-se à distância dos grandes momentos do gênero, essas danças de sinais se assemelhariam quase a esses gestuais inocentemente perversos pelos quais as crianças maliciosas, nos trazendo para dentro do seu jogo, querem ou nos fazer raiva ou nos revelar um segredo magnífico.

Seja como for, estamos aí no cerne de um charme do qual será preciso atravessar a passagem estreita. Somos tomados pela arte de um outro algoritmo, antigo instrumento de uma mídia esquecida (do qual hoje só sabemos utilizar os signos exteriores): a poesia. É a poesia que move Mods.

VII

A poesia?

É a exploração da realidade pelas vias mais normais que a normalidade e mais evidentes que a evidência.

É o fato de aproximar aquilo que é daquilo que é, por outros meios além da sucessão descritiva, da lógica associativa ou da lei da causalidade.

É o fato de produzir, em vista de um sentido, certas associações harmônicas – a menos que estabeleçamos previamente um sentido cujos harmônicos serão o fundamento de outros sentidos.

A poesia é mais ainda, mas uma coisa é sempre necessária: que a realidade, nela como aliás em todo lugar, seja primeiro percebida em toda sua integralidade, e o patente com o latente. Pois, se por desventura a realidade tivesse sido previamente esvaziada de seu sentido, então, exangue, ele não poderia mais gerar outra coisa além do que ela gera hoje: uma réplica cansada de sombras frouxas.




VIII

Mods enfrenta o perigo de existir e de fazer existir, e tudo nele foi magnificamente medido de acordo com o metro mais justo. Vê-se claramente na maneira como a obra adequa seu passo ao tempo de uma hora. A duração que lhe permite funcionar só lhe permite funcionar na medida exata de sua conclusão. A duração concluída, o filme está completo.

Antes, foi preciso que o doentinho, no impulso da quinta e última coreografia, entabulasse sua saída.

Uma vez que a menina do “NÃO” é reconduzida à narrativa pelo assobio que se ouve de sua canção, a dança de ruptura pode acontecer. Ela vai de certa forma desenfeitiçar o menino de seu encantamento e fazer com que ele aceite sua salvação, com que ele possa enfim dizer um “SIM”. Diríamos, então, que ele se desamarrota e se desdobra, que ele sai de um casulo onde ele teria feito uma longa viagem de aprendizagem. Salvo dos males, ele se desdobra. Ele se levanta e anda.

IX

Saídos do Alojamento, o charme do filme continua a operar sobre nós. Como acontece quando conseguimos rever um desses divertimentos que produzia o cinema outrora.

Esses filmes eram tão cheios de pequenos tudos, feitos de um turbilhão de grandes nadas. Planávamos na gratuidade de um mundo belamente falso, frequentemente colorido de arrogância e de um cinismo de bom tom. Era maravilhoso.

Inútil citar algo. Seria preciso somente dizer que Mods é, ele também, da espécie dos grandes divertimentos, e precisar que, pertencendo a esse mundo e a esse tempo, ele se reservou de toda conivência com esse espírito de ironia que podíamos certamente se permitir outrora, mas que hoje em dia, no banho do niilismo ambiente, não poderíamos exercer sem falseá-lo.

Mods faz outra coisa. Enquanto recomeça sobre novas bases, ele retoma o gênero do zero e se dá ao luxo de recriá-lo. Milagre consumado. É maravilhoso. Mods é um filme inaugural.

X

Contudo, esse filme de hoje não parece vir de um tempo ou de um país preciso. Como é possível, então, que ele nos faça sentir em casa?

É que Mods nos reata a qualquer coisa de enterrado, das raízes, dos sentimentos, dos cheiros das aventuras - daquelas que as crianças pressentem, do mais profundo de sua seriedade. Aqui, a vida se anuncia para eles com essa imensa finalidade que lhes é certamente prometida, e eles são ao mesmo tempo felizes e ansiosos por serem os únicos a penetrar o grande segredo. Eles ignoram que outros o souberam, que muitos o esqueceram e que alguns se gabam por nunca tê-lo conhecido.

Restam aqueles que o sabem: a vida só começa de verdade a partir do momento em que se acredita piamente que o Grande Jogo te é oferecido e que é preciso espreitar o chamado.

Mods exorciza o que é pesado e abre às descobertas. Mods faz reviver.

Aujourd’hui, Mods foi publicado originalmente na revista La Lettre du Cinéma, n° 24, setembro/outubro/novembro de 2003. Tradução: Luiz Fernando Coutinho.

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